— Ouvimos o que disse a respeito de cantar as melodias épicas. Tem razão. Talvez não haja ninguém para cantá-las para nós. Mas, pelo menos, não seremos forçados a passar o resto da vida a cantá-las para os outros.
— Se formos, partimos sem esperança de regressar vivos. — disse Steel, acrescentando, com um sorriso amargo: — Nem sequer podemos rogar aos deuses que nos acompanhem. Lutaremos sós.
— Sabemos disso, senhor — respondeu o jovem Cavaleiro Solâmnico. — Compreendemos e estamos preparados para partir. Apenas pedimos que nos restitua as armaduras e as espadas.
Como é tolo, filho! — chegou-lhe a voz da mãe. — Querem as armas para poderem virá-las contra ti.
— Filho, veja-se no exemplo deles. — Agora era a voz do pai. — Estes homens partem com honra, para lutar pelo que sabem estar certo.
Steel desapertou o fecho que prendia a jóia e a corrente deslizou-lhe para a mão. Segurou-a por um instante e, com um gesto sereno, pousou-a no túmulo do pai.
As vozes beligerantes se calaram. O túmulo ficou silencioso. Os cavaleiros se mantinham calados, à espera da decisão de Steel. O cavaleiro das trevas desembainhou a espada, a espada do pai, que só se quebraria se o mesmo lhe acontecesse.
27
Preparativos.
Os Cavaleiros de Takhisis honraram os mortos com palavras e canções. Estes eram em número excessivo, e não havia tempo para enterrar ou cremar os corpos condignamente. Perturbados com o fato, alguns cavaleiros referiram-se aos abutres, chacais e outras criaturas mais hediondas, suscetíveis de conspurcar ou devorar os cadáveres.
Os paladinos das trevas formaram um círculo em volta do corpo do malogrado suserano, interrogando-se sobre o que poderiam fazer para proteger os mortos, quando de repente se aperceberam da presença de uma mulher.
Aproximara-se deles em silêncio, ninguém sabia de onde. Era linda, com os olhos da cor do luar refletido nas águas azuis. Contudo, embora parecesse serena à superfície, do seu íntimo emanava uma força perigosa. Envergava uma armadura cintilante de água e com o aspecto de escamas de peixe. Flores e conchas marinhas cingiam-lhe o cabelo negro. Reconhecendo-a, os cavaleiros esboçaram uma vênia.
Tratava-se de Zeboim, deusa do mar e mãe de Ariakan.
Ajoelhando-se diante do filho morto, fitou-o longamente. Duas lágrimas deslizaram-lhe pelas faces, reluzentes como pérolas, liquefazendo-se na armadura. Olhou de relance para a torre, para o clarão bruxuleante das tochas, para as sombras fugazes, para os corredores e os átrios vazios, e depois para os cavaleiros.
— Ninguém virá perturbar os seus mortos — disse a deusa. — Olhem. Escutem. Nenhum pássaro sobrevoa o céu. Nenhuma fera perambula por aí. Nenhuma mosca zumbe. Todas as criaturas, desde o inseto mais insignificante ao dragão mais poderoso sabem que, esta noite, o seu destino pende na balança. Todos aguardam o fim... tal como nós.
Steel dirigiu aos homens um gesto silencioso. Estes deixaram a deusa a sós com o seu defunto.
Os Cavaleiros da Solamnia voltaram a envergar a armadura que lhes fora retirada quando da sua captura. Afivelaram as espadas e colocaram os elmos. Segurando as lanças de dragão, montaram os dragões prateados que tinham chegado muito tarde para participar na batalha da Torre do Sumo Sacerdócio.
Os cavaleiros das trevas montaram os dragões azuis que compunham os efetivos de reserva.
Steel ficou desapontado por constatar que Fulgor não os integrava. Os camaradas da fêmea desconheciam o seu paradeiro. Ficara enraivecida quando receberam ordens para não participar no combate. Com o seu bafo faiscante, quase despedaçara o oficial e fizera explodir um grande pedaço de rocha do flanco da montanha. Amuada, desaparecera. Desconheciam para onde, mas presumiam que, desobedecendo às ordens, decidira participar da batalha.
Steel efetuou uma busca por entre os corpos dos dragões, na esperança de encontrá-la e poder prestar-lhe as devidas honras antes de partir. Fez às pressas, por descargo de consciência, e não conseguira descobrir o cadáver de Fulgor entre os outros dragões azuis. Concluiu que jazia, em algum lugar, entre as rochas das montanhas de Vingaard.
Preparava-se para subir na sela de um dragão azul desconhecido, quando lhe veio um chamado colérico de cima. Agitando as asas e provocando nuvens de poeira, Fulgor desceu dos céus e aterrou bem diante do dragão azul. Com o pescoço arqueado, numa atitude de desafio, as asas abertas e a cauda a fustigar o chão, avançou para o estranho.
— Esse cavaleiro é meu! — exclamou, sibilante. — Ninguém mais, a não ser eu, o conduz à batalha!
Steel apressou-se a intervir antes que estalasse uma briga ali, pois o animal que se preparava para montar não tinha intenção de ceder. Em tom polido, Steel pediu-lhe para se juntar aos dragões que se dispunham a partir sozinhos. O azul cedeu a contragosto, deixando bem claro que se sentia ofendido. Dado Steel ter solicitado ao animal para se afastar, Fulgor não o atacou, mas quando este se afastava deu-lhe um beliscão na cauda.
O dragão e o condutor saudaram-se com manifestações de júbilo, contentes por se verem vivos e, ao que parece, incólumes.
— Os outros disseram que tinha ido embora furiosa — observou Steel. — Onde esteve? Para onde foi?
Fulgor sacudiu a cabeça, e a crina azul reluziu ao clarão das tochas.
— Fui examinar essa tal fenda de que todo mundo fala, confirmar por mim mesma se existia ou não — respondeu. E lançando um olhar de soslaio aos dragões prateados, acrescentou: — Confesso que achei que fosse um truque. — A voz do animal tornou-se mais profunda e, baixando a cabeça, rematou: — Steel, não se trata de truque. Dentro do Abismo, desenrola-se uma batalha medonha. Estive lá. Vi com estes olhos.
— Como decorre a guerra?
— A nossa Rainha fugiu — respondeu Fulgor, com os olhos a cintilar. — Sabia?
— Sabia — respondeu Steel em voz baixa e soturna.
— Alguns deuses acompanharam-na: Hiddukel foi o primeiro. Zivilyn também partiu, afirmando que já presenciara todos os fins e que, se permanecesse, receava influenciar o desfecho. Gileano continua a escrever o seu livro, o derradeiro. Os outros deuses, chefiados por Kiri-Jolith e Sargonnas, prosseguem a luta, mas... situando-se no mesmo plano imortal que Caos... pouco podem fazer contra ele.
— E nós, podemos? — perguntou Steel.
— Sim, era o que vinha te dizer. Mas — Fulgor olhou de relance para os homens montados —, parece que já está sabendo.
— Estou, mas folgo por ver a informação confirmada.
Steel subiu para o dorso de Fulgor e ergueu o estandarte dos Cavaleiros de Takhisis, a bandeira que ostentava o lírio da morte e a caveira. Os Cavaleiros da Solamnia ergueram o seu, decorado com o pica-peixe, que numa das garras segurava uma rosa e na outra uma espada. Na noite quente e parada, as flâmulas penderam, inertes.
Ninguém se rejubilou nem pronunciou palavra. Cada homem olhou pela derradeira vez, e por longo tempo, para o mundo que nunca mais veria. Os Cavaleiros da Solamnia baixaram o estandarte, numa saudação à Torre do Sumo Sacerdócio. Steel baixou o seu, saudando os mortos.
Os dragões levantaram vôo, fazendo os respectivos condutores elevarem-se num céu vazio, despojado de estrelas e de deuses.
28
A prenda.
Instruções.
— O que estamos esperando? — perguntou Usha, mostrando-se nervosa e irritadiça. — Porque não vamos para algum lugar, fazemos alguma coisa?
— Daqui a pouco, daqui a pouco — murmurou Dougan.
— Concordo — interveio Tasslehoff, circulando com uma expressão desanimada e levantando nuvens de cinza com as botas. — As coisas agitaram-se bastante quando aquelas sombras bailarinas tentaram nos apanhar. Não é que sentisse medo, atenção! Verdade. De modo que me revolvi todo ao me ver diante de mim mesmo e sabendo que não era. Quer dizer, que não era eu. E depois, ouvir-me papaguear aquelas coisas horríveis... aquelas tretas de eu não ser nada. Quando sabem bem que sou.