Palin estremeceu.
— Não falemos mais disso — observou. — Concordo com a Usha. Devíamos fazer alguma coisa.
— Daqui a pouco, daqui a pouco — repetiu Dougan, sem se mexer.
O duende encontrava-se sentado num cepo carbonizado e abanava-se com o chapéu emplumado. Mostrava-se solene, preocupado, distante dali. Inclinava a cabeça, como que a tentar ouvir e perscrutava em frente, como que a observar. Houve uma altura em que gemeu e cobriu o rosto com a mão, como se visse e escutasse algo excessivo para a sua capacidade de resistência
Ansiosos, os outros observaram-no, insistiam nas perguntas e não obtinham resposta. Por fim, desistiram. Usha e Palin sentaram-se, de mãos entrelaçadas e falando em surdina. Queixando-se da cinza que o fizera tossir, Tas pôs-se a vasculhar os bolsos.
— É agora! — exclamou Dougan, levantando-se de um pulo com uma rapidez que sobressaltou os outros. — Vêm a caminho. Precisamos ir ao encontro deles!
— Ainda não — ouviu-se uma voz. — Ainda não.
Viram então Raistlin materializar-se no meio do pinhal, perto do altar destruído.
— Bonito! — murmurou Dougan, olhando para o mago com ar de poucos amigos. — Era só o que nos faltava!
O duende dirigiu-se pesadamente ao seu encontro, dando pontapés irritados em tocos de árvores. Raistlin observava-o, esboçando, com os lábios finos, um sorriso divertido.
— Tio! — exclamou Palin, em voz alegre. — Que notícias nos traz? Viu as criaturas que nos atacaram? — acrescentou, encaminhando-se para Raistlin.
Relutante, Usha seguiu-o.
— Esperem! Esperem por mim! — gritou Tas, mas nesse momento algo lhe revolveu os bolsos, fazendo derramar o conteúdo e obrigando-o a esgaravatar o solo, a fim de recuperar os objetos.
Palin e Dougan entraram no bosque, Usha seguia, renitente, atrás, embora Palin tentasse arrastá-la para a frente.
— Vai falar com o teu tio — disse a jovem, largando-lhe a mão. — É importante e eu só ia estorvar.
Raistlin observava a cena e os seus olhos dourados semicerraram-se, mostrando-se impacientes e desdenhosos. Pouco à vontade, sentindo que de alguma forma traíra a confiança do tio, separou-se de Usha sem dizer palavra e dirigiu-se, em passos largos, para o pinhal.
Encarando o sobrinho com ar firme, Raistlin observou:
— Quase falhou... — Os seus olhos pousaram-se no local onde Palin enfrentara o ataque das criaturas-sombras.
Palin corou.
— Eu... desculpe, tio — disse, num fio de voz. — Foi... tão horrível e... estranho...
Os olhos frios de Raistlin pousaram-se em Usha.
— Talvez estivesse distraído, incapaz de se concentrar — observou. O rubor de Palin acentuou-se.
— Não, tio, acho que não. Foi... — Abanando a cabeça, ergueu-a e enfrentou o olhar de Raistlin. — Tio, não tenho desculpa. Se não fosse a Usha, me converteria no que a criatura disse que eu era... em nada. Mas prometo que não voltará a acontecer.
— Diz-se que aprendemos mais com os nossos fracassos do que com os nossos êxitos. Sobrinho, espero que o ditado se aplique a você, para o bem de todos nós. Lhe será confiada uma responsabilidade enorme. Há vidas, muitas, dependendo de você.
— Não o desiludirei, tio.
— Não se desiluda a si mesmo.
Raistlin olhou para Usha, que se refugiara à sombra de uma árvore calcinada.
— Basta de bobagens! — grunhiu Dougan. — Mestre Mago, cá para mim, e atendendo à pouca idade e inexperiência, este jovem portou-se muito bem. E se o seu amor pela menina o distraiu um bocadinho, foi o amor dela que, no final, o salvou. Raistlin Majere, onde se encontraria você agora se, em vez de fraqueza, considerasse o amor uma força?
— Provavelmente estaria na cozinha do meu irmão, a desencantar moedas de ouro do nariz, para alegria das criancinhas — replicou Raistlin. — Entreguei-me por completo à magia e esta nunca me desiludiu. Foi a minha amante, esposa e filha...
— Por ela até matou o teu irmão — observou Dougan.
— Foi — respondeu Raistlin, em tom calmo. — Conforme disse, aprendemos com os nossos erros. Agora chega. O tempo está se esgotando... em sentido literal. Dalamar regressou à torre. Viveu inúmeras e perigosas aventuras, mas os momentos que nos restam são muito preciosos para desperdiçá-los com pormenores. Basta dizer que ele e os outros descobriram um ponto fraco. O Caos viu-se forçado a se manifestar neste plano de existência. Assumiu uma forma física e isso o tornou vulnerável.
— Tão vulnerável como uma montanha diante de um duende dos esgotos munido de picareta — murmurou Dougan.
— Não disse que será fácil derrotá-lo — replicou Raistlin, dardejando o duende com um olhar fulminante. — Mas existe um ponto fraco na rocha.
— Ah, já sei — respondeu Dougan, com um suspiro.
— Então sabe o que tem de ser feito?
— Também sei disso — retorquiu Dougan remexendo os pés pouco à vontade. — Verei o que se pode arranjar.
— Tio e nós, o que faremos? — perguntou Palin.
— Vão ao Abismo. Se reunirão ali com Steel Montante Luzente e com um pequeno bando de cavaleiros, que aceitaram o desafio de combater o Caos e seus lacaios. Os cavaleiros precisam de um feiticeiro. Que será você, sobrinho.
— Os cavaleiros não confiam em feiticeiros — respondeu Palin. — Não vão me querer.
— Cabe a você dissuadí-los. Sobrinho, não vou mentir. Este é o principal motivo porque te envio e não outro feiticeiro mais poderoso. É o único mago que o teu primo Steel ponderaria em aceitar.
— Irei, tio, e darei o meu melhor — respondeu Palin, acrescentando rispidamente: — Mas acho que terei pouca utilidade se combater o Caos com pétalas de rosa e guano de morcego.
Raistlin quase esboçou um sorriso.
— Ficaria espantado por descobrir o que pode realizar com esses ingredientes. Contudo, irá melhor equipado. O Conclave enviou-lhe isto... uma prenda.
Raistlin estendeu as mãos e, do ar repassado de cinzas, brilhando tenuamente surgiu um livro. Este era velho e se encontrava bastante gasto, com as páginas secas e quebradiças. A capa, em couro vermelho, rachara em vários pontos e as letras da frente, gravadas a ouro, já tinham quase desaparecido. Só o nome, coberto de poeira e teias de aranha, continuava visível.
Magius.
Raistlin estendeu o livro a Palin.
Este aceitou-o, com uma expressão reverente e as mãos trêmulas. Intimidado, ficou a olhá-lo, fitando longamente o nome que figurava na capa.
— O livro de encantamentos mais poderoso que o Conclave conta no seu acervo — disse Raistlin. — Só os que subiram aos mais elevados postos receberam permissão para ler este livro, e isso nunca fora das paredes da Torre de Wayreth. Poucos no mundo conhecem a sua existência. O livro de encantamentos de Magius, o maior feiticeiro de guerra que já existiu.
— Foi treinado com Huma... embora em segredo, pois de outro modo os Cavaleiros da Solamnia não o permitiriam. Desafiando todas as normas, lutou abertamente ao lado de Huma. Os seus encantamentos são complexos, difíceis. Não terá muito tempo para memorizá-los, exigirão a máxima concentração.
Os olhos de Raistlin piscaram na direção de Usha, que se afastara um pouco da árvore atrás da qual se ocultava.
Perturbado, Palin seguiu o olhar do tio. Ficou calado por um instante. Depois, estendendo a mão para a jovem, disse com voz severa: