Soltando um grito de guerra estridente, Fulgor elevou-se no ar.
As palavras e o exemplo de Steel fizeram redobrar a coragem dos cavaleiros da Luz e das Trevas que, erguendo os estandartes decaídos, se arremessaram ao ataque.
O Caos acolheu-os com confusão, loucura, terror e sofrimento. O fogo irrompia e elevavam-se os guinchos de criaturas de pesadelo. Brandindo as lanças do dragão, os Cavaleiros da Solamnia atacaram os dragões de fogo. Os dragões prateados quase se deixaram consumir pelas chamas mortais, num esforço para aproximarem os cavaleiros do inimigo. Estes, suando profusamente e piscando os olhos ao clarão fantasmagórico, arremessavam as lanças. A fé que os imbuía e a força dos braços guiava-lhes o arremesso, certeiro e real. Vários dragões de fogo tombaram, indo despencar no solo e explodindo num mar de chamas. Muitos dragões prateados caíram também, com os focinhos queimados, os olhos cegos, as asas carbonizadas e ressequidas.
Os cavaleiros das trevas combatiam os guerreiros demoníacos, esfacelando-os com as espadas malditas. Os dragões azuis lutavam com as garras e as faíscas. Mas sempre que uma arma desferia um golpe no coração de um guerreiro do demônio, o frio do vazio de breu, que já existia antes do começo dos tempos, despedaçava o metal e gelava a mão que o segurava. Agüentando com estoicismo a dor, os cavaleiros transferiam a lâmina para a mão boa e prosseguiam a luta.
Palin encontrava-se bastante recuado da linha da frente dos cavaleiros e temporariamente fora de combate. A fúria da arremetida dos cavaleiros fez os guerreiros demoníacos e os dragões de fogo recuarem, obrigou-os a passar à defensiva. Não por muito tempo. Com um aceno da mão gigantesca, Caos estava a congregar reforços, não da linha de vanguarda mas criando-os a partir dos corpos tombados.
Palin tinha de ser rápido a pronunciar o encantamento. Abrindo o livro de Magius na página correta, segurou-o na mão esquerda, tirando o Bastão de Magius na direita. Examinou, pela última vez, as palavras da fórmula. Inspirando fundo, começou a recitá-las, levantou a cabeça e avistou Usha.
Não dera por ela antes, pois a jovem mantivera-se escondida atrás do altar esfrangalhado. Mas levantara-se e observava a batalha, com ar temeroso, segurando nas mãos a Pedra Preciosa Cinzenta. Que fazia ali?
Sentiu ímpetos de lhe gritar, mas receou que, ao fazê-lo, desviasse a atenção mortífera do deus pai para a presença de Usha. Palin precisava estar com ela, de protegê-la e, ao mesmo tempo, de permanecer ali, pronunciar o encantamento e proteger os cavaleiros.
Já sentia a magia palpitar, rastejar-lhe para a cabeça. As palavras começaram a deslizar, indo se esconder nas fendas da sua concentração fragmentada. Conseguia ver as palavras na página, mas não era capaz de pronunciá-las, de lhes imprimir a entoação correta, que era o mais importante de tudo. Logo se converteriam num papaguear sem sentido.
O amor é a minha força!
Recuou de novo até àquela praia terrível, onde, em pânico, paralisado de terror, assistira à luta dos irmãos, receoso pelas vidas deles e querendo ajudar com tanto desespero, que fora um fracasso rotundo. Que interessava que a vantagem numérica do adversário fosse esmagadora, que ele estivesse ferido, que não tivessem uma única hipótese...
Sabia que falhara. E estava predestinado a falhar de novo.
Sobrinho, aprendemos com os nossos erros, ouviu uma voz doce e sibilante lhe dizer.
De repente, as palavras do encantamento revestiram-se de sentido, sabia como pronunciá-las.
Posicionou o bastão e em tom claro e forte, entoou as palavras:
“Abdis Tukngf Kumpul-ah Kepudanya Kuasaham!”
Tenso, ansioso, ficou à espera de sentir o efervescente formigamento nas veias, que assinalava o começo da magia.
“Burus longang degang birsih sekalilagang!”
A magia não adquiria vida. O mago já quase terminara o encantamento. Sabia que o pronunciara corretamente, que não cometera um único erro. Faltavam só umas palavras...
“Degang Kuashnya, lampar Terbong Kilat mati yangjahat!”
Sobre ele pairava o Caos. O fogo o queimou. A morte o envolveu. Steel ia morrer, Usha, Tas e Dougan iam morrer, os pais, as irmãzinhas e tantos outros morreriam...
Sacrifique-se. Sacrifique-se pela magia. Sobrinho, o que você sacrificou pela magia? Eu renunciei à saúde, à felicidade. Renunciei ao amor — do meu irmão, dos meus amigos. Renunciei à única mulher que possivelmente me daria amor em troca. A tudo isso renunciei, em troca da magia. E você, sobrinho, renuncia a quê?
Palin pronunciou as últimas duas palavras do encantamento:
“Xis. Vrie.”
Depois, em tom sereno, acrescentou baixinho:
— Renuncio a mim mesmo.
As palavras contidas no livro de encantamentos começaram a brilhar, emanando um fulgor prateado. Derramando-se pela capa de couro, o esplendor se liquefez na mão de Palin.
O mago foi percorrido por um formigamento que lhe provocou calafrios. Sentiu-se avassalado pelo êxtase da magia, misto de prazer sublime e dor intensa. Deixou de temer o que quer que fosse, o malogro ou a morte. O resplendor impregnou Palin, ganhou consistência dentro dele, no recôndito do seu coração.
O cristal, incrustado na garra de dragão que sobrepujava o Bastão de Magius, começou a irradiar um clarão prateado. Este foi se tornando mais forte, mais vivo, com uma ardência que transcendia as chamas do Caos. Refletindo-o, as armaduras de prata dos Cavaleiros da Solamnia converteram-se, elas mesmas, em cintilações. As armaduras negras dos cavaleiros das trevas também a absorveram, mas sem a refletirem. À cintilação mágica, as escamas dos dragões prateados refulgiam, quais diamantes. As escamas dos dragões azuis lembravam safiras reluzentes.
Quando o fulgor atingiu os guerreiros demoníacos, estes soltaram guinchos de dor e de fúria. As criaturas-sombra deslizaram, lembrando fumaça a ser expelida de uma chaminé. Tentando evitar o fulgor, os dragões de fogo recuaram, sendo vitimados pelas reluzentes lanças prateadas do dragão.
Caos apercebeu-se da Luz. Vista de soslaio, a cintilação era incômoda, irritante, pelo que decidiu livrar-se dela.
Deixando de prestar atenção à condução das suas legiões, Caos procurou localizar a malfadada luz. Avistou o bastão e a criatura minúscula e insignificante que o segurava. Fitou a luz, fitou-a diretamente...
A magia impregnou Palin com um ímpeto que o obrigou a ajoelhar-se. Contudo, continuou a segurar o bastão com pulso firme. O fulgor emanado do cristal lançou um feixe de luz esbranquiçada, radiosa, viva e ofuscante, que atingiu o gigante bem nos olhos.
— Steel, agora! — gritou Palin. — Ataque agora!
Steel Montante Luzente e Fulgor sobrevoavam o campo de batalha, e aguardavam, impacientes, pois viram-se forçados a ver os camaradas morrer sem nada poderem fazer para ajudá-los ou se vingar. Steel vira Palin vacilar e, em silêncio, suplicara-lhe que agüentasse. O êxito do primo provocou-lhe uma satisfação enorme e — a bem da verdade — um sentimento cálido e inesperado de orgulho fraterno.
Não precisava ouvir Palin gritar para saber quando desencadear o ataque. Quando a luz do cristal atingiu o Caos em cheio nos olhos, Steel brandiu a espada e enterrou as esporas nos flancos de Fulgor.
Caos soltou urros de raiva e de fúria, tentando destruiu a luz que lhe penetrara na cabeça, cegando-o e causando-lhe dor. Mas os seus olhos sem pálpebras não podiam se fechar. Sendo redemoinhos de trevas, sugavam tudo o que olhassem, incluindo o debilitante clarão.
Fulgor voou direto contra Caos. O gigante gesticulava e sacudia a cabeça. Tentando libertar-se do abraço da luz. Guiando o dragão, Steel gritou-lhe palavras de incitamento, impelindo o animal para as chamas retumbantes que formavam o cabelo e a barba do gigante.