— Protetor, agora está em segurança — disse meigamente.
Ao pronunciar estas palavras, pairou sobre as águas o apelo doce e nítido do som de clarins. Usha virou-se.
O Sol elevava-se das águas, lembrando um olho vermelho em brasa, a arder de ódio contra o mundo. Banhados pelo estranho fulgor, os pináculos da cidade de Palanthas lançavam reflexos vermelhos como o sangue.
LIVRO 2
1
Os honrados mortos.
Um único prisioneiro.
O encontro predestinado.
Os corpos dos Cavaleiros Solâmnicos jaziam nas areias da praia da baía da Thoradin, numa longa fila. Não eram muitos, apenas 18. Haviam sido chacinados até não restar nenhum sobrevivente. Atrás deles, também em fileira, viam-se os restos mortais dos respectivos escudeiros.
Um vento quente rodopiava por entre a areia e os altos canaviais, fazendo esvoaçar as capas rasgadas e tingidas de sangue que envolviam os corpos inertes dos homens.
Um oficial cavaleiro presidia às exéquias.
— Lutaram como bravos — discursou, formulando o epíteto dos cavaleiros mortos. — Ultrapassados em número, apanhados de surpresa, podiam ter batido em retirada e ninguém os censuraria. Contudo, permaneceram no terreno, mesmo confrontados com a iminência da derrota. Lorde Ariakan ordenou-nos que os enterrássemos com todas as pompas. Deitem cada homem de forma conveniente e coloquem suas armas ao lado. O terreno é muito pantanoso para enterrarmos os corpos. Informaram-me que não longe daqui existe uma gruta. Sepultaremos aí os cadáveres, selamos a mesma e assinalamos como um local onde repousam bravos homens. Examinou os corpos? Há alguma forma de lhes identificarmos os nomes, guerreiro cavaleiro Montante Luzente?
— Meu senhor, há um sobrevivente. — comunicou o cavaleiro, fazendo uma saudação ao superior.
— Verdade? Desconhecia.
— Um mago Veste Branca. Finalmente foi capturado.
— Ah, claro. — O subcomandante não mostrou surpresa. Os magos lutavam na retaguarda dos exércitos, lançando feitiços a partir de lugares seguros, dado que, devido à ética da sua arte, estavam proibidos de envergar armaduras ou transportar armamento mais convencional. — Estranho os Cavaleiros Solâmnicos recorrerem a um feiticeiro. Outrora, tal nunca aconteceria. Mas os tempos mudam. Esse mago deve saber o nome dos cavaleiros. Tragam-no aqui para que os identifique, para que possamos homenageá-los quando os baixarmos para a última morada. Onde se encontra agora?
— Foi capturado pelos Cavaleiros Cinzentos, meu senhor.
— Vá buscá-lo, Montante Luzente.
— Sim, meu Senhor. Às suas ordens, meu senhor.
O cavaleiro afastou-se, a fim de cumprir a missão de que fora incumbido. Não constituía tarefa fácil. Na costa sul da baía de Thoradin, o único local calmo era agora o campo de batalha, no topo do paredão sobranceiro ao mar. A vasta faixa de areia negra fervilhava de homens e equipamento. As praias encontravam-se juncadas de embarcações costeiras, alinhadas umas contra as outras, e a todo o instante mais barcos chegavam à costa. Os Brutos, comandados por cavaleiros das trevas, descarregavam sacas de equipamento e de mantimentos, tudo desde espessos rolos de corda, passando por barricas de água, aljavas para setas e escudos enormes, identificados com o lírio da morte — a insígnia dos Cavaleiros de Takhisis.
Em terra, procedia-se à ferragem dos cavalos. Os donos mantinham-se junto dos animais, acalmando-lhes o terror e prometendo-lhes que a longa viagem acabaria logo. Dragões azuis, conduzidos por cavaleiros, patrulhavam os céus, embora o Senhor de Ariakan quase não receasse ver o desembarque perturbado por mais intromissões. Os mensageiros haviam comunicado a debandada total dos poucos habitantes que viviam na aldeia piscatória vizinha, a leste de Kalaman.
Estes por certo divulgariam a sua chegada, mas quando conseguissem reunir efetivos de peso para atacá-lo, já estariam longe. Alcançado o predomínio sobre a praia, planejava marchar rapidamente para oeste, a fim de se apoderar de Kalaman, cidade portuária de águas fundas. Após a queda desta, convocaria o resto das suas tropas da Fortaleza das Tempestades, a fortaleza intransponível dos cavaleiros que se situava a norte, no oceano Túrbido. Com um porto de águas fundas para os seus navios e congregados os efetivos, desencadearia o principal assalto até o rio Vingaard (Ácrido) e contra as planícies solâmnicas.
Objetivo: conquistar o único local em Krynn que nunca caíra nas mãos do inimigo, o lugar onde tantos anos vivera como prisioneiro. Prisioneiro respeitado, é certo, mas sem deixar de estar cativo. Conquistar o único local que, noite após noite, lhe perseguia os sonhos. E não lhe restavam dúvidas de que o conseguiria. Nesse local, iniciaram-no nos segredos da força que os imbuía. Já conhecia o segredo da fraqueza deles. O objetivo do Senhor de Ariakan — a Torre do Sacerdócio Supremo. E, a partir daí, o mundo.
Steel Montante Luzente abriu caminho por entre a amálgama de gente, quase ensurdecido pelos gritos dos oficiais, pelas pragas e grunhidos dos Brutos, vergados sob pesadas cargas, pelos relinchos assustados dos cavalos e, ocasionalmente, pelo chamado estridente de um dragão azul, dirigido do alto a um dos camaradas.
Refulgia o sol da alvorada. O calor já se revelava intenso e o Verão ainda mal começara. Terminada a batalha, o cavaleiro retirara grande parte da armadura mas envergava ainda a couraça e os anteparos para as mãos, e o lírio da morte identificava-o como um Cavaleiro do Lírio. Sendo condutor de dragões, não participara na batalha, que se desenrolara no solo. Finda a mesma, o seu batalhão fora destacado para efetuar as cerimônias fúnebres de ambos os lados e assim, embora com o posto de Segundo-Comandante, desempenhava o papel de moço de recados.
Contudo, Steel Montante Luzente não se ressentia de tal incumbência, tal como o seu comandante não se ressentia de lhe atribuírem os trâmites decorrentes das exéquias. Mandava a disciplina dos Cavaleiros de Takhisis que servissem a Rainha das Trevas em todos os domínios e que, ao fazê-lo, a cumulassem de glória.
A meio percurso da praia, Montante Luzente viu-se forçado a parar e inquirir onde assentavam os Cavaleiros Cinzentos, os Cavaleiros de Abrolho, arraiais. Sentiu-se aliviado quando constatou que tinham procurado abrigo num pequeno bosque.
Devia ter adivinhado, pensou, esboçando um leve sorriso. Ainda não conheci um feiticeiro que não procurasse tirar partido do conforto posto à sua disposição.
Montante Luzente abandonou a praia apinhada, quente e barulhenta e penetrou na relativa frescura proporcionada pelos pinheiros. A algazarra diminuiu, tal como o calor. Fez uma breve pausa, a fim de apreciar a amenidade e a quietude, em seguida prosseguiu caminho, ansioso por ver cumprida a missão e abandonar aquele lugar, mau grado este ser fresco e convidativo. Começava agora a experimentar a usual sensação de desconforto e inquietação, votada por todos os que não são bafejados com o dom da magia aos que o possuem.
Foi encontrar os Cavaleiros de Abrolho num pequeno bosque de pinheiros altos, a alguma distância da praia. Pousadas no chão, viam-se algumas arcas grandes de madeira, decoradas com intrincados símbolos arcanos. Alguns aprendizes procediam à seleção das mesmas, assinalando os artigos em rolos de pergaminho. O cavaleiro evitou passar junto destas. Os cheiros que emanavam causavam engulhos. Interrogou-se como os aprendizes conseguiam suportá-los, mas supôs que, com o tempo, iam habituando. Os Cavaleiros de Abrolho transportavam sempre consigo equipamento próprio.
Esboçou uma careta ao sentir um odor particularmente desagradável que escapava de uma das arcas. Ao olhar de relance para o conteúdo, descobriu objetos putrefatos e fétidos, cuja origem mais valia não apurar. Agoniado, desviou os olhos e procurou o seu objetivo. Avistou, através das sombras das árvores, uma mancha branca, reluzindo ao Sol, embora parcialmente obscurecida por laivos cinzentos. Montante Luzente não era particularmente fantasioso, mas ocorreram-lhe as nuvens brancas, a lembrar algodão, toldadas pelo cinzento da tempestade. Considerou-o bom presságio. Hesitante, aproximou-se do chefe da ordem — uma poderosa feiticeira de categoria superior, conhecida por Dama da Noite.