Quase cego pelo fogo, Steel protegeu os olhos com a mão. Localizando o alvo, investiu. O calor era medonho e, em contato com o metal da armadura, tornava-a ardente e intolerável ao tato. O elmo sufocava-o. Retirou-o e arremessou-o ao solo. As chamas tostaram-lhe a pele. Sentia-se incapaz de respirar o ar em combustão que lhe queimava os pulmões. Contudo, não esmoreceu.
Caos usava uma couraça de diamante e ferro em brasa, mas esta só lhe cobria o peito. Os braços e as mãos encontravam nus.
— Vire! — gritou Steel a Fulgor, puxando as rédeas para a direita, a fim de virar a cabeça do dragão. — Conduza-me até o ombro dele!
Baixando a cabeça, o dragão atravessou, a troar, o fogo da barba do deus pai e vomitou o bafo feito de relâmpagos. Ondas de eletricidade atingiram Caos, tornando-o mais irritado e enraivecido. Sabia que havia um inimigo por perto, pelo que começou a gesticular às cegas. Steel esquivou-se, protegendo-se atrás do pescoço de Fulgor.
O dragão levantou a asa direita, bateu-a e voou tão rente à couraça cintilante que o calor que esta irradiava lhe chamuscou as asas. Steel arquejava, tentando respirar. Devido ao braseiro, tinha os olhos marejados de lágrimas. Contudo, manteve-os abertos, fixos no alvo.
O dragão aproximou-se do gigante. Debruçando-se temerariamente na sela, Steel brandiu a espada e, soltando um grito de guerra estrepitoso, cravou a lâmina no braço enorme.
— Menina! Ele conseguiu! Conseguiu! — Dougan guinchava, dava pulos. — Agora! Depressa! Depressa!
A espada de Steel encontrava-se enterrada na carne do gigante. Caos soltava ganidos e mugidos. Incapaz de ver o que o picara, lançou o braço para trás, obrigando Steel a largar a espada.
Da ferida esguichou uma gota cintilante de sangue.
— Menina, agora! Agora! — gritou Dougan, ofegante.
— Vou contigo! — exclamou Tas. — Mas espere um instante! Deixe eu ver onde pus a colher...
— Não há tempo! — interrompeu-o Dougan, empurrando Usha: — Vai, menina! Agora!
Usha lançou um olhar hesitante a Dougan e a Tas, que remexia os alforjes. O duende acenou-lhe com a mão.
Usha aproximou-se rastejando.
“Concentre-se no objetivo. Não pense no Palin, não pense no Tas, não pense em como está assustada. Pense no Protetor e nos outros. Pense em como morreram. Nunca fiz nada por eles, nunca lhes exprimi a minha gratidão. Parti sem lhes agradecer. Isto... é pela minha família, pelos Irdas perdidos.”
Usha manteve os olhos fixos na gota de sangue reluzente, que deslizava pela espada.
Aproximou-se, ficando perto das pernas monstruosas, dos pés enormes que batiam com estrépito no solo, fendendo-o e abalando-o.
A gota de sangue ficou suspensa, qual jóia inacessível.
Não caiu.
Como um espinho de rosa, a espada de Steel — a espada do pai — continuava cravada na carne de Caos.
Ao gesticular com o braço para trás, Caos arrancara a espada da mão de Steel. O gume não provocara grandes estragos no gigante, apenas o fizera derramar uma gotinha de sangue.
Steel precisava desferir novo ataque, mas antes, tinha que recuperar a espada. Sentia-se desfalecer, e o dragão também começava a ficar sem forças. Fulgor, muito queimada, perdera um olho e tinha as escamas da cabeça ressecadas e sangrando. As asas azuis estavam enegrecidas e a fina membrana se rasgara.
Steel não conseguia encontrar oxigênio suficiente para respirar. A respiração vinha-lhe aos haustos, acompanhados de uma dor excruciante. Sentia-se tonto, com a cabeça girando. A sua pele estava queimada e cheia de vesículas.
Rilhando os dentes, inclinou-se para Fulgor e deu-lhe uma palmadinha no pescoço.
— Pequena, precisamos tentar outra vez — disse. — Temos que acabar com isto. Depois, já podemos descansar.
O dragão aquiesceu com a cabeça, muito exausto e dolorido para falar. Mas quando obrigou as asas esfrangalhadas a bater, antes de se lançar de novo, e ao cavaleiro, na batalha, ainda arranjou forças para soltar uma rosnada de desafio.
Fulgor pairou junto do braço ferido, no último instante ergueu rapidamente a asa e arremeteu de frente contra o gigante. Steel conseguiu apoderar-se do punho da espada e, com um último puxão, arrancou-a do braço do gigante.
Reluzindo, a gota de sangue tombou da ferida.
Usha viu o sangue cair. A esperança redobrou-lhe a coragem. Indiferente aos pés tonitroantes, precipitou-se para frente, a fim de apanhar a gota.
Nesse momento, porém, Caos, soltando pragas medonhas, fez girar o braço e esmagou o que para ele nada mais era do que um inseto incômodo.
O dragão sentiu-se sem forças nas asas para fugir ao abraço da mão e esta esmagou-o como se se tratasse de uma mosca.
Com o pescoço partido, Fulgor despencou dos céus, arrastando consigo o dono. Viu-se uma cintilação de luz prateada e ambos se espatifaram no chão, perto de Palin. A asa do dragão atingiu o mago, obrigando-o a largar o bastão e o livro de encantamentos.
O fulgor branco prateado desapareceu.
A gota de sangue obtida com tanto sofrimento, caiu no chão, sendo logo absorvida pelo solo acizentado e ressequido.
Usha deu um grito de desolação. Pondo-se de quatro, começou a esgaravatar a poeira úmida e tingida de sangue, na esperança de recuperar algum.
Sobre ela pairou uma sombra que a enregelou até os ossos, lhe tolheu as mãos e paralisou o coração.
Caos conseguia avistá-la agora, inclinada sobre o sangue derramado e com a Pedra Preciosa Cinzenta nas mãos.
O gigante compreendeu o perigo que corria.
Ferido e tonto, Palin procurou freneticamente o bastão, que jazia debaixo do dragão morto. A sombra, que ia crescendo, derramava trevas em volta do mago. Levantando a cabeça, viu que os olhos vazios e tenebrosos do gigante — que recuperara a visão — se concentravam em Usha.
Palin levantou-se atabalhoadamente.
— Usha! Cuidado! Fuja! — gritou.
Com o estrépito que o gigante fazia, a jovem não o ouviu. Ou ignorou-o. Mantendo o olhar fixo no solo manchado de sangue, tentava, em desespero, recuperar uma gota, para introduzi-la dentro das metades da Pedra Preciosa Cinzenta.
Desistindo do bastão, Palin acorreu em auxílio dela.
Nunca chegou a fazê-lo.
A mão enorme de Caos, que parecia prender o vento, arrastou este consigo. Palin foi atingido por uma rajada de ar quente, que o empurrou para trás e o fez chocar contra o corpo do dragão. A cabeça pareceu explodir-lhe de dor.
— Usha — murmurou, enjoado e tonto. Esforçou-se por se levantar e, em espírito, conseguiu-o, mas o seu corpo jazia no sangue do dragão. Sentiu o próprio sangue escorrer-lhe, quente, pelo rosto. Refletido nos olhos vazios do gigante, não passava de uma partícula de poeira. Depois, tornou-se nada.
Tasslehoff despejava os alforjes e o chão em volta dele estava praticamente juncado de objetos. Um pedacinho de cristal azul, um bocadinho de árvore do vale petrificada, um anel de cabelo da juba de uma grifo, um lagarto morto numa tira de couro, uma rosa murcha, um anel branco com duas pedras vermelhas, uma pena branca de galinha...
— Onde meti a maldita colher?! — gritou, frustrado.
— Usha! Desista, menina! Fuja! — berrava Dougan.
— O que se passa? O que aconteceu? — Tas levantou a cabeça, ansioso por ver. — Estou perdendo alguma coisa?
Usha, ainda agachada, continuava a esgravatar a terra, com as lágrimas a banhar-lhe o rosto. Palin, que jazia numa poça de sangue do dragão, parecia um boneco enrodilhado.
Ouviu-se o arrastar das botas que calçavam os pés enormes do gigante... E estas rolavam pelo chão ribombando e chiando como seixos gigantescos, que esmigalhavam os corpos dos cavaleiros mortos e dos dragões moribundos. Usha e Palin encontravam-se à mercê do monstro.