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O kender sentiu no coração um baque gelado, que lhe doeu tanto como se levasse um murro de gigante.

— Vai esmagá-los! — gritou Tas. — Vai reduzi-los a purê! Esta... esta coisa é pior do que Lorde Soth! Os meus amigos não podem ficar esborrachados! Tem que haver por aqui algum grandalhão que o impeça!

Desvairado, Tas olhou em redor, à procura de um cavaleiro, um dragão ou mesmo um deus, que prestasse auxílio. Os cavaleiros e dragões que ainda restavam, encarniçavam-se, desesperados, nas suas próprias batalhas. Quanto a Dougan, o duende, que parecia uma trouxa enrodilhada, estava cabisbaixo, com as mãos flacidamente pousadas no regaço e lamentava-se:

— A culpa é minha! A culpa é minha...

Tas levantou-se e, ao fazê-lo, percebeu de repente que era a pessoa mais alta e grandalhona do mundo (à sua esquerda e com exceção do gigante). O coração transbordou-lhe de orgulho, fazendo explodir o aperto gelado da mão que lhe sugava a vida.

Tasslehoff arremessou os alforjes para o lado. Sacando da faca — a faca que um dia Caramon batizara de “Mata-Coelhos” — o kender precipitou-se para os amigos caídos, com a presteza e agilidade inatas à raça kender e um dos motivos por que conseguem sobreviver num mundo de minotauros irados, comerciantes furiosos e xerifes enraivecidos.

Protegendo Usha com o corpinho, Tasslehoff soltou um grito kender.

— Toma isto! — disse, enterrando a faca conhecida por “Mata-Coelhos” no dedo grande do pé de Caos.

O sangue respingou. O deus levantou o pé ferido, preparando-se para esborrachar a criatura insignificante e impertinente que o machucara. Caos fez desabar o pé no chão. Ergueram-se nuvens de poeira e Tasslehoff desapareceu.

— Tas! — gritou Usha, cheia de desgosto e furiosa. Fez menção de tentar salvar o amigo, mas chegou-lhe um grito estridente de Dougan.

— Menina, conseguiu! Olhe para baixo! Olhe para a Pedra Preciosa Cinzenta!

Aturdida, Usha obedeceu.

No meio de uma das metades da gema, reluzia uma gota de sangue.

— Menina, feche as metades! — gritou-lhe Dougan, dando pulos. Feche-as! Depressa!

Em volta dele, Usha ouviu os guinchos e os ribombos de Caos. As chamas do monstro queimaram-na, os ventos que soprava tentaram arrasá-la. Ia morrer, mas não interessava. Palin morrera. O alegre kender estava morto. O taciturno cavaleiro das trevas estava morto. O Prot estava morto. Todos tinham morrido, nada restava. A esperança morrera.

Unindo as mãos, Usha juntou as duas metades da Pedra Preciosa Cinzenta, aprisionando lá dentro o sangue de Caos. Depois...

Silêncio.

Silêncio e trevas.

Usha não conseguia ver nada, ouvir nada, sentir nada, nem sequer o chão debaixo dos pés. O único objeto sólido que sentia eram as arestas frias, pontiagudas e facetadas da Pedra Preciosa Cinzenta.

Usha largou-a, mas a gema não caiu.

A Pedra Preciosa Cinzenta libertou-se do seu aperto e, de repente, explodiu.

Milhões de estilhaços de cristal reluzente esparramaram-se nos ares, pontilhando as trevas com miríades de luz.

Tratava-se de estrelas. Estrelas novas, estranhas.

Elevou-se uma Lua, uma só e pálida. Tinha um rosto bondoso e, no entanto, descuidado.

E foi então que, ao clarão do luar, Usha pôde ver.

O Caos desaparecera. O Dougan desaparecera. Em volta da jovem, jaziam os corpos dos mortos. Procurou, até encontrar Palin.

Cingindo-o com os braços, Usha deitou-se ao seu lado. Pousando a cabeça no peito do mago, fechou os olhos e, sem querer fitar as estrelas desconhecidas e a Lua fria, procurou nas trevas, encontrar Palin.

32

Chuva.

Outono.

A despedida.

Uma gota de água fria caiu-lhe na testa.

A chuva caía, gentil, fria e suave. Palin encontrava-se deitado na relva molhada, de olhos fechados, pensando que ia ser um dia aborrecido, cinzento e sombrio para cavalgar, que o irmão mais velho se queixaria amargamente que a chuva lhe enferrujava a armadura e estragava a espada. E que o outro irmão, dando uma gargalhada, sacudiria as gotas do cabelo, comentando que todos cheiravam a cavalo molhado.

E hei de lembrar-lhes que precisamos da chuva, que devíamos nos sentir gratos pela seca ter acabado...

A seca.

O Sol.

O Sol ardente, causticante.

Os meus irmãos estão mortos.

As lembranças voltaram, horripilantes e repassadas de dor. O líquido que tombava não era chuva, mas sangue. As nuvens eram a sombra do gigante, que sobre ele pairava, sobranceiro. Receoso, Palin abriu os olhos, fixou-os nas folhas de uma árvore do vale, folhas que derramavam chuva e começavam a mudar de cor e assumir os laivos quentes e dourados do Outono.

Palin soergueu-se e, num estado de grande confusão, olhou em redor. Encontrava-se deitado num campo que devia situar-se perto da terra natal, pois as árvores do vale só crescem num lugar de Ansalon, que é em Consolação. Mas o que ele fazia ali? Há bem poucos instantes, estava no Abismo, morrendo.

Avistou, à distância, o seu lar, a Estalagem da Última Casa, que se erguia incólume. Uma tênue espiral de fumaça elevava-se da chaminé, derramando na atmosfera molhada um perfume doce.

Ouvindo um gemido perto de si, abaixou a cabeça.

Usha encontrava-se deitada ao seu lado, aninhada como uma criança, com um dos braços a proteger-lhe a cabeça. Vivenciava sonhos terríveis.

Tocou-lhe gentilmente no ombro. Remexendo-se, a jovem chamou-o:

— Palin! Onde você está?

— Usha, sou eu. Estou aqui — respondeu ele com doçura.

Usha abriu os olhos e, ao avistá-lo, estendeu os braços e estreitou-o contra si.

— Pensei que tinha morrido. Me vi só, completamente só, as estrelas eram diferentes e estavam todos mortos...

— Estou bem — respondeu Palin, sentindo-se atônito por constatar que se encontrava bem, quando a última coisa que recordava era uma dor excruciante.

Alisou-lhe o lindo cabelo prateado e deixou-se embalar no dourado dos olhos da jovem, agora vermelhos de tanto chorar.

— Sente-se bem?

— Sim... não fui ferida. O gigante... O Tas... Oh, santos deuses! — Usha desvencilhou-se das mãos e, a cambalear, levantou-se. — Tas! O gigante!

Virou-se, e a respiração morreu-lhe num soluço.

Palin seguiu-lhe o olhar e foi então que avistou os mortos.

Os corpos dos Cavaleiros da Solamnia e dos Cavaleiros de Takhisis jaziam lado a lado. Dos que tinham voado para o Abismo para combater o Caos e as suas legiões medonhas, nem um sobrevivera. Os cavaleiros estavam expostos em câmara-ardente, com as mãos cruzadas no peito, o rosto sereno e em paz, sem vestígios de sangue, medo e dor, que as suaves gotas de água haviam feito desaparecer.

Através do manto de chuva, Palin apercebeu-se de um movimento, de algo a se mexer. Não se enganara. Um dos cavaleiros ainda vivia. Palin percorreu apressadamente as fileiras dos mortos. Aproximando-se, reconheceu Steel.

O rosto do cavaleiro estava coberto de sangue. Encontrava-se de joelhos e tão fraco que mal se sustinha de pé. Levou ao peito a mão gelada de um jovem Cavaleiro da Solamnia. Depois, as forças esvaíram-se e Steel tombou na erva molhada e acastanhada.

Palin postou-se junto dele e inclinou-se, olhando de relance para a armadura, amassada, esfrangalhada e manchada de sangue, para o rosto pálido e a respiração estertorosa.

— Steel — chamou baixinho. — Primo.

Steel abriu os olhos, agora vítreos e embaciados.

— Majere... — murmurou, esboçando um sorriso pálido e tênue. — Você lutou bem.

Palin pegou na mão do cavaleiro das trevas e sentiu-lhe a carne gelada.

— Posso fazer alguma coisa para que se sinta mais tranqüilo?