— Não pode fazer isso! — exclamou Palin, aturdido, incrédulo. — Como é possível que nos abandone?
— Meu filho, fizemos este sacrifício para salvar a Criação que tanto amamos — respondeu Fizban. Depois, olhou para os corpos dos cavaleiros e para o lenço que tinha na mão. — Tal como eles se sacrificaram para salvar o que amavam.
— Não compreendo! — murmurou Palin, angustiado. — E o bastão? E a minha magia? — acrescentou, levando a mão ao coração. — Deixei de senti-la dentro de mim.
Raistlin pousou a mão no ombro de Palin.
— Eu disse que um dia se tomaria o maior mago que já existiu. Sobrinho, cumpriu a minha profecia. O próprio Magius nunca foi capaz de lançar aquele encantamento. Orgulho-me de ti.
— Mas o livro ficou destruído...
— Não interessa — respondeu Raistlin, com um encolher de ombros. — Não é, sobrinho?
Palin ficou a olhá-lo, ainda sem compreender. Depois, o significado do que o tio lhe dissera penetrou-lhe no âmago.
— Deixou de haver magia no mundo...
— Tal como a conhece, deixou. Pode ser que haja outra magia. Cabe a você descobri-la — disse Fizban com brandura. — Inicia-se agora o que será conhecido em Krynn como a Idade dos Mortais. Acho que será a época final. A derradeira, a mais longa e possivelmente a melhor. Adeus, meu filho. Adeus, minha filha.
Fizban apertou-lhes as mãos e depois virou-se para Raistlin.
— Bem, você vem? Sabe que não tenho o dia todo. Tenho que ir construir outro mundo. Vejamos. Como se fazia? Arranja-se um bocadinho de terra e mistura-se com um pedacinho de guano de morcego...
— Adeus, Palin. Cuide bem dos teus pais — disse Raistlin, virando-se depois para Usha. — Adeus, Filha dos Irdas. Não só vingou o teu povo, mas também o redimiu. — E relanceando o olhar pelo deprimido Palin acrescentou:
— Ainda não lhe contou a verdade? Acho que vai alegrá-lo bastante.
— Ainda não, mas o farei — respondeu Usha. — Prometo-lhe, tio — acrescentou, com voz tímida.
Raistlin sorriu.
— Adeus — disse de novo.
Apoiando-se ao bastão, ele e Fizban viraram-se e atravessaram o campo, onde jaziam os mortos.
— Tio! — chamou Palin, desesperado. — Os deuses se foram! Agora que ficamos sós, o que faremos?
Raistlin parou e olhou para trás. À luz das estrelas estranhas, a sua pele irradiava laivos ouro pálido e os seus olhos dourados faiscavam.
— Sobrinho, não está só. Lembre-se das palavras de Steel Montante Luzente. Têm-se um ao outro.
Palin e Usha ficaram sozinhos no campo junto à torre de Consolação, e que posteriormente se tornou sagrado.
Ao mesmo afluíram as pessoas de Ansalon para, juntas, erigirem um túmulo de pedra, transportada de Thorbardin por um exército de duendes. O túmulo era simples, elegante, construído em mármore branco e obsidiana preta. Em volta, os humanos plantaram árvores, trazidas pelos elfos de Qualinesti e Silvanesti, que eram chefiados pelo rei, Gilthas.
No interior foram depositados, lado a lado, os corpos dos Cavaleiros da Solamnia e dos Cavaleiros de Takhisis.
Ao centro, num ataúde feito de um mármore preto raro, repousava Steel Montante Luzente, envergando a armadura negra e empunhando a espada do pai. Noutro ataúde, esculpido em mármore branco, jazia o corpo de Tanis Meio Elfo, vestido com uma armadura de couro verde e tendo ao lado um bastão de cristal azul, ali colocado pelos filhos de Vento do Rio e de Lua Dourada.
A abóbada foi fechada e lacrada com portas duplas de prata e de ouro. Num dos lados da porta, os Cavaleiros da Solamnia esculpiram uma rosa e no outro um lírio, gravando nos blocos de pedra os nomes dos cavaleiros.
Por sobre a porta colocaram um nome apenas, que homenageava um dos heróis mais famosos de Ansalon.
Tasslehoff Pés Ligeiros.
Por baixo, esculpiram uma braçadeira hoopak.
Foi denominado o túmulo dos Últimos Heróis e constituía a efeméride aos que morreram na batalha ocorrida no final daquele Verão terrível.
O túmulo, longe de ser um local solene, pulsava de alegria (para grande confusão dos cavaleiros). De todo o continente de Ansalon afluíam kenders em peregrinação. Traziam os filhos e faziam piqueniques nas áreas circundantes. Enquanto comiam, contavam histórias do seu famoso herói.
Decorrido pouco tempo — menos de uma geração — cada kender com o qual cruzássemos nos mostraria um objeto interessante qualquer — possivelmente uma colher de prata —, jurando-nos pelo penacho que este possuía toda a espécie de poderes de encantar.
E que este lhe fora dado pelo “Tio Tas”.
Epílogo
Sob a árvore, Flint Forjardente passeava, de trás para frente, da frente para trás. Não podia parar, visto a forja ter se apagado e o velho duende sentir-se enregelado até os ossos. Dava palmadas com as mãos para aquecer os dedos, batia com os pés para desentorpecê-los, resmungava e queixava-se para reavivar o sangue.
— Onde se meteu aquele kender danado? Disse que vinha até aqui. Há uma eternidade que o espero. O Tanis, o Sturm e os outros já partiram há tempos! Nem faço idéia onde estão agora! Provavelmente estão refastelados em alguma estalagem acolhedora, bebendo um copo ou dois de sangria quente e falando dos bons e velhos tempos. E eu, onde me encontro?
O duende bufou.
— Em parte nenhuma é o que é! Debaixo de uma árvore morta, junto a uma forja fria, à espera do cabeça de atum do kender. E o que ele anda fazendo? Vai ouvir poucas e boas! — Flint assanhou-se até ficar com a cara vermelha. — Se calhar está na prisão. Ou quem sabe se um minotauro não o pendurou pelo penacho. Talvez um mago furioso o transformou em lagarto. Ou caiu num poço, como aconteceu uma vez, quando tentava apanhar o próprio reflexo e seria eu a tirá-lo de lá, não fosse ele me puxar para dentro. Se o Tanis não acudisse...
Flint ia grunhindo, andando de um lado para o outro, batendo com as palmas e os pés. Estava tão embrenhado nestas atividades que nem sequer notou que um companheiro se juntara a ele.
Um kender, vestido com umas calças de um amarelo vivo e um elegante colete de xadrez encarnado e verde, aproximara-se sorrateiro e sustendo as gargalhadas, imitava o duende nas costas deste.
O kender passeava, batia palmas e os pés ao compasso de Flint, até que o duende — detendo-se a meio do percurso para acender o cachimbo — esquadrinhou a bolsa de tabaco e descobriu lá dentro outra mão. Após um cálculo por alto, descobrindo três em vez de duas, o duende rugiu e virou-se precipitadamente.
— Te peguei! — gritou Flint, agarrando o ladrão. O ladrão agarrou-se a Flint.
— Flint! Sou eu! — exclamou Tasslehoff, cingindo os braços em volta do amigo.
— Bom, já não era sem tempo! — replicou Flint. — Seu cabeça de atum! Veja o que você fez! Por sua causa deixei cair o cachimbo! Ora, pequeno, deixa pra lá. Não fique assim! Não queria gritar com você. Assustou-me, foi só isso!
Tas tentava rir e soluçar ao mesmo tempo, mas descobriu que o riso e o soluço se emaranhavam na garganta, o que tornava a respiração um pouco difícil. Flint pôs-se a dar palmadas nas costas do amigo.
Recuperando o fôlego, graças ao desvelo de Flint, Tas conseguiu falar.
— Até que enfim consegui. Aposto que teve saudades minhas, não teve?
Ignorando o retumbante “não!” de Flint, Tas continuou a tagarelice:
— Tive saudades suas. Vivi uma aventura das mais maravilhosas. Vou te contar.
O kender livrou-se dos alforjes, espalhou-os em volta e preparou-se para se sentar debaixo da árvore.
— Por onde começo? Já sei! A Colher de Revolver dos Kender. Me foi dada pelo...