— Senhora, quem te fala é o guerreiro cavaleiro Steel Montante Luzente — disse, à laia de saudação. — Fui enviado pelo subcomandante cavaleiro Trevalin, a fim de solicitar o comparecimento do prisioneiro, o mago de vestes brancas, junto dele. Lorde Trevalin necessita do prisioneiro para proceder à identificação dos corpos dos mortos, a fim de poderem ser enterrados com as devidas honras. E também — acrescentou em voz baixa, para não ser ouvido —, para confirmar a contagem.
Trevalin gostaria de saber se escapara algum cavaleiro solâmnico, alguém suscetível de montar uma emboscada, possivelmente na esperança de capturar algum chefe.
A Dama da Noite não retribuiu a saudação do cavaleiro e de modo nenhum pareceu agradada com o pedido deste. Lilith, uma mulher mais idosa, quase na curva dos 50 anos, fora outrora um Veste Negra mas, quando surgira a oportunidade, trocara de vassalagem. Tal como os Cavaleiros de Abrolho, era considerada uma renegada pelos outros feiticeiros de Ansalon, incluindo os que envergavam as vestes negras. Tal podia parecer confuso para alguns, visto todos os feiticeiros servirem a mesma Rainha das Trevas. Mas os Vestes Negras serviam em primeiro lugar Nuitari, a deusa da magia negra, e em segundo sua mãe, a Rainha Takhisis. Os Cavaleiros do Abrolho serviam incondicionalmente, e antes de mais nada, a Rainha das Trevas.
A Dama da Noite lançou um olhar intenso a Steel.
— Porque motivo Trevalin te enviou?
— Dona — replicou Steel, tendo o cuidado de não revelar a irritação que lhe provocava este interrogatório desusado, — na altura eu era o único disponível.
A Dama da Noite franziu o cenho, tornando mais profundo o vinco negro entre as sobrancelhas.
— Volte à presença do subcomandante Trevalin — disse. — Diga-lhe para mandar outra pessoa.
Steel respondeu, com um encolher de ombros:
— Dona, vai me desculpar, mas as minhas ordens vêm do subcomandante Trevalin. Se pretende anulá-la, deverá contatá-lo diretamente. Permanecerei aqui até ter conferenciado com o meu comandante.
O cenho da Dama da Noite tornou-se mais carregado, mas viu-se apanhada nas malhas do protocolo. Para alterar as ordens de Montante Luzente, seria obrigada a enviar um dos seus aprendizes à presença de Trevalin. A viagem possivelmente de nada serviria, pois de qualquer forma Trevalin tinha falta de efetivos e não enviaria outro cavaleiro executar o que este podia fazer facilmente.
— Por certo é essa a vontade de Sua Majestade das Trevas — murmurou a Dama da Noite, fixando no cavaleiro os olhos verdes e penetrantes. — Pois que assim seja. Curvo-me perante ela. O mago que procura encontra-se ali.
Steel não fazia a mínima idéia quanto ao objetivo desta estranha conversa e não pretendia aprofundar o assunto.
— Trevalin quer o mago para quê? — inquiriu a Dama da Noite. Montante Luzente, há que ter paciência, repetiu ele para si mesmo.
— Precisa dele para identificar os corpos — respondeu. — O Veste Branca é o único sobrevivente.
Ao ouvir isto, o prisioneiro levantou a cabeça. O seu rosto quase adquiriu a palidez dos cadáveres que jaziam na areia. Para surpresa dos que estavam incumbidos da sua guarda, levantou-se de um salto.
— Não pode ser! — exclamou, com raiva na voz. — Por certo não sou o único!
Steel aquiesceu com uma saudação respeitosa e no entanto digna, como lhe haviam ensinado. Trate todas as pessoas de categoria, título e educação com respeito, até mesmo o inimigo. Em especial se for o inimigo. Respeite sempre o teu inimigo. Se o fizer, nunca o subestimará.
— Cremos que assim seja, Mestre Mago, embora não tenhamos maneira de confirmar. Planejamos enterrar os mortos com todas as honras e gravar os nomes nas sepulturas. É o único capaz de identificá-los.
— Conduza-me até eles — solicitou o jovem mago.
Espalhara-se pelo rosto o rubor da febre. Manchas de sangue, algumas possivelmente dele mesmo, sujavam-lhe as vestes. Tinha um dos lados da cabeça gravemente contundido e golpeado. No chão, encontravam-se os sacos e bolsas que lhe haviam sido tirados. Um desafortunado aprendiz qualquer iria manipulá-los, arriscando-se a ser queimado — ou pior — pelos objetos arcanos que, devido à sua propensão para o bem, apenas um Veste Branca podia utilizar.
Tais objetos não teriam serventia imediata para um Cavaleiro Cinzento, pois apesar da capacidade dos Cavaleiros do Abrolho para adquirir poder das três luas, a branca, a negra e a vermelha, cada magia conhece os da sua espécie e reage, amiúde, com violência à presença dos opostos. É possível a um Cavaleiro do Abrolho utilizar um artefato dedicado a Solinari, mas só à custa de longas horas de estudos dos mais disciplinados e intensos. Os componentes dos feitiços do Veste Branca e outros objetos mágicos capturados seriam guardados em segurança, para fins de estudo, e os que não fossem passíveis de manipulação fidedigna podiam ser trocados por artefatos arcanos de mais valia — e menos perigo — para os Cavaleiros do Abrolho.
Contudo, Montante Luzente reparou que o Veste Branca mantinha consigo um bordão. Feito de madeira, este era sobrepujado por uma garra de dragão em prata, que segurava, no punho, um cristal multifacetado. O Cavaleiro possuía conhecimentos do arcano que lhe permitiam constatar ler este bordão indubitavelmente mágico e possivelmente de elevado valor. Interrogou-se por que motivo haviam permitido ao Veste Branca mantê-lo.
— Suponho que o mago pode partir — disse a Dama da Noite em tom rude e com relutância. — Mas só se eu acompanhá-lo.
— Com certeza, Dona.
Montante Luzente fez o possível para esconder o choque. Não era possível este Veste Branca pertencer a uma hierarquia superior. E havia a acrescentar o fato de nenhum Veste Branca de hierarquia superior jamais permitir ser tomado prisioneiro. No entanto, Lillith — o chefe da Ordem dos Cavaleiros do Abrolho — tratava este jovem com a circunspecção que votaria, digamos, a Lorde Dalamar, renomado Senhor da Torre da Feitiçaria Suprema, em Palanthas.
O Veste Branca movia-se com esforço, apoiando-se pesadamente no bastão. A dor e a angústia consumiam-lhe o rosto. A marcha provocava-lhe estremecimentos e tinha que morder o lábio para não chorar. Avançava com a lentidão de um duende atolado. Se viajassem àquela velocidade, levariam o resto do dia e a noite para chegar ao local onde jaziam os corpos. O subcomandante Trevalin não ia ficar nada satisfeito com o atraso.
Montante Luzente olhou de relance para a Dama da Noite. O mago era seu prisioneiro. Cabia a ela prestar-lhe assistência. A Dama da Noite olhava os dois com uma expressão de desagrado e — fato estranho — de curiosidade, como que à espera de ver o que faria Montante Luzente naquela situação. Agiria como lhe haviam ensinado — com honra. Se tal desagradasse à Dama da Noite...
— Apóie no meu braço, Mestre Magno — sugeriu Steel. Falou num tom frio, desapaixonado, mas com respeito. — Verá que o percurso se torna mais fácil.
O Veste Branca levantou a cabeça, olhando atônito, mas logo a desconfiança lhe toldou a expressão.
— Que farsa é essa?
— Não é farsa, senhor. Vejo que sofre e obviamente sente dificuldade em caminhar. Pretendo apenas ajudá-lo, senhor.
O Veste Branca esboçou um esgar de perplexidade.
— Mas... — disse. — Você é... você é um dos... dela.
— Se, com isso, pretende dizer que sou um servo de Takhisis, a nossa Rainha das Trevas, então dou-lhe razão — replicou Steel Montante Luzente, em tom solene. — Pertenço-lhe de corpo e alma. Contudo, tal não impede que eu seja um homem de honra, que sente prazer em saudar a bravura e a coragem sempre que se justifique. Suplico-te, senhor, permita que o meu braço te sirva de arrimo. O trajeto é longo e vejo que está ferido.