— Com mil diabos, e pode me dizer onde deverei colocá-lo? Naquela maldita embarcação não havia uma nesga de sombra! Acho que não deve restar uma única sombra neste malfadado mundo! Odeio este lugar! A ilha inspira-me sentimentos esquisitos, é como se fosse mágica ou coisa assim.
— Compreendo o que quer dizer — concordou o companheiro em tom sombrio. Não parava de olhar ao redor, perscrutando as árvores e esquadrinhando a praia. Só vislumbrava os brutos, que por certo não experimentavam o incômodo de sentimentos agourentos. Isto porque eram bárbaros.
— Bem sabe que nos avisaram para evitarmos este local.
— Quê? — O outro cavaleiro parecia atônito. — Desconhecia. Quem te disse?
— O Montante Luzente. Quem lhe transmitiu foi o próprio Lorde Ariakan.
— O Montante Luzente deve ter os seus motivos. Pertence ao séquito de Ariakan, embora eu saiba que pediu para ser transferido para um batalhão de combate. Além disso, Ariakan é padrinho dele.
Aparentando nervosismo, o cavaleiro inquiriu baixinho:
— Tais informações não são sigilosas, não é?
O outro cavaleiro pareceu divertido.
— Se julga que o Montante Luzente quebrou algum juramento e divulgou notícias que deveria guardar para si, então não o conhece muito bem. Mais depressa permitiria que lhe arrancassem a língua com tenazes em brasa. Não, Lorde Ariakan discutiu o assunto com os comandantes de todos os regimentos, antes de decidir que medidas havia de tomar.
O cavaleiro encolheu os ombros. Pegando numa porção de seixos, começou por distração a arremessá-los na água.
— Quem transmitiu as novas foram os Cavaleiros Cinzentos. Algum augúrio revelou a localização desta ilha e que era habitada por um elevado número de pessoas.
— Então, quem nos advertiu para não vir?
— Os Cavaleiros Cinzentos. O mesmo augúrio que lhes mencionou a ilha, avisou-os para não se acercarem. Tentaram persuadir Ariakan a manter-se à distância. Afirmaram que este lugar podia significar catástrofe.
De cenho franzido, o outro cavaleiro olhou ao redor, cada vez mais incomodado.
— Então, por que motivo nos enviaram? — inquiriu.
— Por causa da invasão iminente de Ansalon. Lorde Ariakan considerou esta manobra necessária à proteção dos seus flancos. Os Cavaleiros Cinzentos foram incapazes de afirmar ao certo que tipo de ameaça esta ilha representava. Tampouco especificaram que catástrofe o nosso desembarque na ilha iria desencadear. Conforme Lorde Ariakan salientou, a catástrofe podia sobrevir mesmo que não fizéssemos nada. De modo que decidiu obedecer ao antigo ditado dos duendes: “É melhor sermos nós a procurar o dragão do que ele a nos procurar.”
— Bem pensado — concordou o companheiro. — Se houver nesta ilha algum exército de Cavaleiros Solâmnicos, melhor será defrontá-los agora. Não que tal seja provável.
Esboçou um gesto em direção às vastas faixas de praia arenosa, às dunas cobertas de vegetação acinzentada e, mais para o interior, à floresta de árvores feias e grotescas que se perfilavam contra as colinas em forma de garra.
— Não consigo entender que motivo arrastaria os Solâmnicos até aqui. Não consigo entender que motivo arrastaria quem quer que fosse até aqui. Os elfos não vivem em lugares tão horrorosos — disse.
— Não há cavernas, portanto não será do agrado dos duendes. Por esta altura, os minotauros já nos teriam atacado, os kenders teriam fugido com a embarcação e as nossas armaduras. Os duendes teriam nos acolhido com alguma espécie de máquina para apanhar peixes acionada por espíritos malignos. Os humanos, como nós, constituem a única raça suficientemente louca para viver numa ilha tão endemoninhada — concluiu o cavaleiro em tom jovial, pegando noutro punhado de seixos.
— Possivelmente um bando errante de malfeitores draconianos, de hoglobines, ou até de ogros. Fugidos há cerca de 20 anos, após a Guerra da Lança, atravessaram o mar, rumo ao Norte, a fim de evitar serem capturados pelos Cavaleiros Solâmnicos.
— Sim, mas esses estão do nosso lado — respondeu o companheiro. — E os feiticeiros do nosso reino teriam transformado as suas vestes cinzentas numa trouxa. Ah, eis que os nossos batedores regressam! Já iremos apurar os fatos.
Os cavaleiros levantaram-se, e os brutos enviados para o interior da ilha precipitaram-se ao encontro dos seus senhores. Os bárbaros exibiam sorrisos rasgados. Os corpos seminus e musculosos reluziam de suor e por eles escorriam sulcos de tinta azul, com a qual se pintavam e à qual atribuíam certos poderes mágicos, como desviar as setas do alvo. Compridas madeixas de cabelos de escalpes, decoradas com penas coloridas, balançavam-lhes nas costas, enquanto atravessavam as dunas de areia com passadas largas e elásticas. Os dois cavaleiros entreolharam-se, aliviados.
— Que foi que descobriram? — perguntou um deles ao chefe, um sujeito de cabelo ruivo, cuja silhueta gigantesca pairava sobre os cavaleiros (seria bem capaz de pegar em cada um deles e erguê-los por cima da cabeça), e que os fitava com uma reverência e um respeito desmedidos.
— Homens — respondeu o bruto. Eram rápidos a aprender e facilmente tinham se adaptado ao idioma comum, falado pela maior parte das várias raças que integravam Krynn. Infelizmente, todas as pessoas que não pertenciam à raça dos brutos eram por estes consideradas “homens”.
O bruto baixou a mão até perto do solo, para indicar homens de pequena estatura, mas também podia tratar-se de duendes, o mais provável era serem crianças. Moveu-a até a cintura, o que indicava a existência de mulheres. O bruto confirmou-o pondo as mãos em concha por sobre o peito e meneando as ancas. Os companheiros riram, dando cotoveladas uns nos outros.
— Homens, mulheres, crianças — disse o cavaleiro. — Muitos homens. Um grande número de homens? Grandes edifícios? Muralhas? Cidades?
Ao que parece, os brutos consideraram a pergunta hilariante, pois soltaram gargalhadas roufenhas.
— O que vocês descobriram? — repetiu o cavaleiro, em tom cortante e reprovador. — Parem com essa tolice!
Os brutos reassumiram de imediato a compostura.
— Muitos homens — respondeu o chefe —, mas muralhas não. Casas. — Esboçou uma careta, encolheu os ombros, abanou a cabeça e acrescentou algo no seu próprio idioma.
— O que ele quer dizer? — perguntou o cavaleiro ao camarada.
— Tem a ver com cães — respondeu o outro, que já chefiara brutos antes e se iniciara nos meandros da língua destes. — Acho que pretende dizer que esses homens vivem em casas mais adequadas a cães.
Vários brutos começaram, então, a dar voltas, de ombros curvados, balançando os braços em torno dos joelhos e grunhindo. Depois, endireitando-se, entreolharam-se e puseram-se a rir.
— Em nome de Sua Majestade das Trevas, o que eles estão fazendo agora? — inquiriu o cavaleiro.
— Não entendo! — respondeu o companheiro. — Acho que devíamos apurar com os nossos próprios olhos. — Retirou parcialmente a espada da bainha de couro preto. — Perigo? — inquiriu ao bruto. — Precisamos de aço?
O bruto soltou outra gargalhada. Desembainhando a espada curta (os brutos lutam com duas, uma comprida e outra curta, assim como com arcos e flechas), enterrou-a na árvore e virou as costas.
Tranqüilizado, o cavaleiro voltou a embainhar a espada. Ambos seguiram os guias e, abandonando a praia, embrenharam-se pela floresta de árvores grotescas. Percorreram cerca de meio quilômetro do que parecia ser uma trilha de animais e chegaram à aldeia.
Apesar das palhaçadas dos brutos, o que aguardava os cavaleiros apanhou-os completamente desprevenidos. Era como se deparassem com um povo que, arrastado pelo grande rio Tempo, fora encalhar nos bancos de areia, e ali permanecera inalterado.
— Por Hiddukel! — exclamou um deles, dirigindo-se em voz baixa ao outro. — “Homens” é um termo muito forte! Homens, aquilo? Não serão antes animais?