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O Veste Branca ajoelhou-se. Com a mão trêmula, levantou a capa que tapava o rosto imóvel e frio. Sufocado pelo desgosto, sentou-se, desamparado, perto do corpo.

— Perdoe, senhor — observou o escriba. — Não entendi o que disse. Qual é o nome desse homem?

— Majere — respondeu, aos haustos, o Veste Branca. — Sturm Majere. E aquele — acrescentou, levantando a capa que tapava o rosto do outro cavaleiro — é Tanin Majere.

Inclinando-se para eles, limpou-lhes o sangue dos rostos desfigurados e beijou-lhes a fronte gelada.

— Os meus irmãos.

2

Primos.

A dívida de honra.

A sentença de morte.

A palavra dada.

— Majere — repetiu Montante Luzente, virando-se para o jovem mago. — A palavra não me é estranha.

Quebrantado pelo desgosto, o Veste Branca não respondeu. Provavelmente, nem sequer ouvira. No entanto, a Dama da Noite escutara. Emitiu um suave ruído sibilante, inspirando fundo. Os olhos verdes semicerraram-se e, por sob as pálpebras meio fechadas, fixaram-se em Steel.

Este, não prestando atenção à Dama da Noite, aproximou-se do mago. O jovem era alto, bem constituído, embora lhe faltasse a rijidez de músculos dos irmãos soldados. Possuía um cabelo castanho avermelhado que lhe descia até os ombros. Tinha mãos de mago: flexíveis, esguias, com dedos afunilados. Ao observar o jovem, Steel conseguia agora vislumbrar a semelhança, não só com os corpos que jaziam na areia como também com o homem que um dia lhe salvara a vida.

— Majere. Caramon Majere. Estes... — Steel apontou para os cavaleiros mortos — devem ser os dois filhos mais velhos. E você é o mais jovem. É filho de Caramon Majere?

— Sou Palin — respondeu o jovem mago em voz trêmula. Com uma das mãos, afastou da testa fria do irmão os anéis úmidos de cabelo ruivo. A outra mão mantinha-se enclavinhada no bordão, como se deste extraísse a força que o mantinha vivo. — Palin Majere.

— Filho de Caramon Majere, sobrinho de Raistlin Majere! — murmurou a Dama da Noite com uma entoação sibilante.

Ao ouvir isto, o subcomandante Trevalin — que estivera desatento à conversa, ocupado com a logística da transferência dos corpos e com a seleção dos homens para a tarefa — levantou a cabeça e olhou para o jovem Veste Branca com redobrada atenção.

— O sobrinho de Raistlin Majere? — repetiu.

— Um excelente espólio — observou a Dama da Noite. — De valor apreciável. O tio foi o feiticeiro mais poderoso que existiu em Ansalon. — E até quando se referia a Palin, a Dama da Noite não tirava os olhos de Steel.

O cavaleiro não deu por isso. Fitando os corpos, embora sem na realidade vê-los, a avaliar pela expressão sombria que lhe toldava o rosto, algo lhe revolvia o espírito, e estava obrigando-o à tomar uma decisão difícil qualquer.

Foi quando Palin se moveu, erguendo os olhos, avermelhados por tantas lágrimas vertidas.

— Você é o Montante. O Montante Luzente. O filho de Sturm... — A voz embargou-se de novo ao citar o nome que era o mesmo do irmão.

Quase como se falasse para consigo, Steel observou:

— Estranha coincidência, o nosso encontro decorrer assim...

— Não foi coincidência nenhuma! — interrompeu a Dama da Noite em voz estridente. Os seus olhos verdes lembravam ranhuras incrustadas de jóias. — Tentei impedi-lo, mas a vontade de Sua Majestade das Trevas prevaleceu. Que significará? Que presságios conterá?

Montante Luzente lançou-lhe um olhar exasperado. O cavaleiro nutria um grande respeito pelos Senhores da Noite e pelo trabalho destes. Ao invés dos Cavaleiros da Solamnia, que desprezavam misturar a têmpera com a magia, os Cavaleiros de Takhisis recorriam às artes esotéricas nas batalhas. Aos feiticeiros eram atribuídos postos e um estatuto idêntico aos dos guerreiros-cavaleiros. Os feiticeiros detinham postos honrados e respeitados em todas as esferas de comando. Mas ainda se registravam atritos ocasionais entre os dois grupos, embora Lorde Ariakan fizesse tudo ao seu alcance para eliminá-los. O soldado, com o seu sentido prático, que via direto do ponto A ao ponto B e nada mais do que isso, não podia esperar compreender o feiticeiro, que via não só A e B como todos os planos de existência mutáveis que se interpunham.

E, de todos os Cavaleiros do Abrolho, esta mulher era a mais intratável — conforme rezava o ditado, via seis faces em todos os objetos apenas dotados de quatro, o mínimo incidente servia de pretexto para uma busca constante de significado, lançava três vezes por dia as suas pedras divinatórias, perscrutava as entranhas dos gatos domésticos. Por mais de uma vez o subcomandante Trevalin e o seu grupo de oficiais se viram em dificuldades nas relações de trabalho com ela.

Pura coincidência. Nada mais. E que não era assim tão estranha como isso. Haver um mago irmão de Cavaleiros da Solamnia que encontra um primo, um Cavaleiro de Takhisis. O mundo estava em guerra, embora nem todos se apercebessem do fato. O encontro entre os três, mais cedo ou mais tarde, decerto seria inevitável. Steel sentia-se grato por uma coisa: pelo fato de não lhe caber a responsabilidade da morte dos dois Majere. Porém, mesmo que fosse ele o responsável, só cumpria o seu dever. Mas o desfecho tornava as coisas mais fáceis. Virou-se para o superior:

— Subcomandante Trevalin — disse. — Rogo-te um favor. Conceda-me autorização para levar os corpos de volta à sua terra natal, para que se proceda às exéquias. Ao mesmo tempo, restituirei o Veste Branca ao seu povo e cobrarei o seu resgate.

Trevalin olhou espantado para Montante Luzente. Palin fitou-o com estupefação. A Dama da Noite murmurou, resfolegou e abanou a cabeça.

— Onde fica a terra natal deles? — inquiriu Trevalin.

— Em Consolação, na Abanassínia Central, bem ao norte de Qualinost. O pai exerce lá as funções de estalajadeiro.

— Mas isso fica longe, em território inimigo. Correrá enorme perigo. Se te assistisse alguma missão especial relacionada com a Visão, então sim, aprovaria. Mas isto... — Trevalin esboçou um gesto com a mão. — Entregar corpos... Não, você é um soldado muito bom e não quero arriscar-me a perdê-lo, Steel. Impossível atender ao teu pedido. — O cavaleiro mais idoso olhou com curiosidade para o mais jovem. — Não costuma agir ao sabor dos caprichos, Montante Luzente. O que te leva a formular tão estranho pedido?

— O pai, Caramon Majere, é meu tio, meio-irmão de Kitiara Uth Matar, minha mãe. Os cavaleiros mortos e o mago são meus primos. Além disso... — O rosto de Steel mostrava-se impávido, inexpressivo, a voz saía-lhe pragmática. — Durante um combate, em que quase fui capturado na Torre do Sumo Sacerdócio, Caramon Majere lutou ao meu lado. Tenho para com ele uma dívida de honra. De acordo com Lorde Ariakan, há que resgatar uma dívida de honra na primeira oportunidade. Aproveito este ensejo para saldar a minha.

O subcomandante Trevalin não hesitou.

— Caramon Majere salvou-lhe a vida? Sim, lembro-me da história. E são estes os filhos dele? — O assunto mereceu ao cavaleiro uma ponderação mais séria, e mentalmente comparou-o com a Visão — o Grande Plano da Rainha das Trevas. Quando da investidura, a cada cavaleiro era concedida a Visão e a revelação de como o seu fio peculiar participava na tessitura da imensa tapeçaria. Nada deveria entrar em conflito com a Visão, nem sequer uma dívida de honra.

Contudo, a batalha terminara e o objetivo fora alcançado. Antes de se deslocarem para oeste, os cavaleiros das trevas levariam tempo a estabelecer o seu bastião na praia. Trevalin não previa mais baixas entre os cavaleiros, pelo menos no futuro imediato. E um dos interesses dos cavaleiros constituía em sempre obter o maior número de informações a respeito do inimigo. Na sua incursão pelo território do adversário, Steel iria decerto ver e ouvir muitas coisas que posteriormente se revelariam úteis.