Não se tratava de uma coincidência. Não, havia aqui a influência de um grande Plano, só que a Dama da Noite não conseguira ainda decifrá-lo. A resposta não tardaria. Disso não tinha dúvidas. Precisava ser paciente. Assim, ia observando e aguardando.
Palin — por se julgar a sós ou por indiferença — começou a falar com os irmãos.
— Tanin, a culpa foi minha — disse meigamente, embora com a voz enrouquecida pelas lágrimas. — Vocês morreram por minha culpa. Sei que me perdoarão. Perdoam-me sempre, faça eu o que fizer! Mas como poderei perdoar-me? Se tivesse sido mais forte na minha magia, mais zeloso nos estudos, se aprendesse mais encantamentos... Se não ficasse paralisado pelo medo e esquecesse tudo o que sabia, se, no fim, não tivesse falhado com vocês. Se fosse mais como o meu tio! Mais como o meu tio!
Estas palavras chegaram aos ouvidos de Lillith. Um frêmito de terror e de excitação percorreu-lhe os braços. Vislumbrou o Plano. Os pensamentos de Sua Majestade das Trevas começavam a parecer claros, ou pelo menos adquiriam a transparência possível aos olhos de uma mente humana. Tinha de ser! Tinha de ser esta a razão! Os dois homens — um debatendo-se com as suas dúvidas e insegurança, o outro transbordante de orgulho — constituiriam a ruína um do outro.
A Dama da Noite não confiava em Steel. Este nunca a inspirara, principalmente desde que descobrira o seu parentesco. Opusera-se por longo tempo à sua admissão nas fileiras dos Cavaleiros de Takhisis. Os prognósticos eram adversos, as pedras divinatórias haviam profetizado catástrofes.
Uma pedra branca à esquerda — era o pai, Sturm Steel, Cavaleiro Solâmnico de renome e até venerado pelos inimigos pelo seu corajoso sacrifício. Uma pedra negra à esquerda — era a mãe, Kitiara Uth Matar, chefe de um dos exércitos dos dragões, famosa pela sua perícia e temeridade no campo de batalha. Ambos se encontravam mortos — a Dama da Noite podia senti-lo —, ambos tentavam alcançar o filho trazido ao mundo por casualidade e não por um desígnio qualquer.
Embora aparentemente calmo e inabalável na sua lealdade e devoção para com a Rainha das Trevas, no íntimo de Steel devia agitar-se um torvelinho de raiva. Na melhor das hipóteses, assim especulara a Dama da Noite. E tinha bons motivos para tal. Steel usava a espada de um Cavaleiro Solâmnico — a espada do seu pai. E também usava (embora se tratasse de um segredo bem guardado) uma jóia concebida pelos Elfos. Conhecida por jóia das estrelas, não era nada mais do que um penhor trocado entre enamorados. Fora, durante a Guerra da Lança, dado a Steel por Alhana Brisa das Estrelas, Rainha dos Elfos de Silvanesti. E Sturm Montante Luzente — ou antes, o cadáver deste, se dermos crédito ao relato de Steel — oferecera a jóia ao filho.
Uma pedra branca à esquerda, uma pedra negra à direita e no centro uma pedra assinalada com uma fortaleza. Desabando sobre a fortaleza, uma pedra assinalada com fogo. Destas, Lillith fez a seguinte leitura: o jovem debatia-se entre duas emoções e este conflito interior redundaria em catástrofe. Que mais podia representar uma fortaleza a ser devorada pelas chamas?
A Dama da Noite porfiara por longo tempo nas suas argumentações, mas ninguém lhe dera ouvidos. Até a Dama da Caveira, uma poderosa sacerdotisa — uma mulher velha, muito velha que, afirmava-se, era uma das favoritas da rainha Takhisis — recomendara a admissão de Steel na cavalaria.
— Sim, ele usa a jóia das estrelas — murmurara a velha múmia através da boca desdentada. — A jóia constitui a única brecha na sua fachada de ferro. A utilizaremos para lhe devassar o coração e aproveitaremos tal vantagem para perscrutar o coração dos nossos inimigos!
Velha arrogante e idiota!
Mas, agora, a Dama da Noite compreendia. Arremessou a idéia para os recessos escuros da mente, muito ao jeito de quando lançava as pedras divinatórias. Esta tombou com transparência, não rolou nem oscilou de um lado para o outro, quedando-se ali com o lado direito para cima. Com ponderação e escolhendo cuidadosamente as palavras, abordou o jovem mago.
— Falou do teu tio — disse, pairando sobre Palin, com a cabeça inclinada, de olhos fitos nele, e os braços cruzados no peito. — Não o conheceu, não é? Claro que não. É muito jovem. — Palin nada disse, apenas apertou um pouco mais o Bastão de Magius. O jovem fizera o que pudera pelos irmãos. Só lhe restava a amarga tarefa de levá-los de volta à terra natal, de comunicar as novas ao pai e à mãe. Encontrava-se agora frágil e vulnerável. A tarefa da Dama da Noite era quase uma brincadeira de crianças.
— Raistlin deixou este mundo antes de você nascer.
Palin levantou os olhos, e nesse relancear, embora persistisse no silêncio, tudo revelou.
— Deixou este mundo. Optou por viver no Abismo, onde dia após dia é atormentado pela nossa temível Rainha.
— Não! — exclamou Palin, agrilhoado pela ânsia de falar. — Não, não é verdade! Pelo seu sacrifício, foi concedida ao meu tio a paz no sono eterno. Paladino iluminou o meu pai com esta percepção.
Lillith ajoelhou-se, para ficar ao nível do jovem e acercou-se dele. Era uma mulher atraente e, quando queria, revelava-se encantadora, tão fascinante como uma serpente.
— É o que teu pai afirma. Era o que afirmaria, não é?
Viu que o jovem se remexia, inquieto, e um frêmito de regozijo a percorreu. Não que Palin a olhasse, mas sentiu-lhe a suspeita que já lhe ocorrera antes. Acreditava no pai — contudo, parte dele não acreditava. Tal dúvida constituía a brecha do escudo dele. E através da mesma, insinuou a sua lâmina de mental envenenada.
— E se o teu pai não estiver certo? E se Raistlin Majere retornar à vida? — A Dama da Noite acercou-se mais. — Irá convocá-lo, não é verdade?
Não passava de uma conjectura, mas a Dama da Noite soube de imediato que acertara. Palin hesitou, baixou os olhos.
— Se Raistlin regressar a este mundo, o tomará como seu aprendiz. Estudará com o maior mago que alguma vez pisou este plano de existência. O teu tio já lhe concedeu uma preciosa oferta. Que mais não fará pelo adorado sobrinho?!
Palin olhou-a de relance, não passou de um vislumbre, mas ela detectou o fogo que lhe ardia nos recônditos dos olhos e soube que este iria consumi-lo.
Satisfeita, a Dama da Noite levantou-se e afastou-se. Já podia deixar o prisioneiro partir. Este encontrava-se em segurança — enleado nas malhas da tentação. E, inadvertidamente, arrastaria consigo o primo. Eis o motivo que levara a Rainha das Trevas a fomentar o encontro entre os dois.
Lillith enfiou a mão numa bolsa preta de veludo e, ao acaso, retirou um punhado de pedras. Murmurando o encantamento, arremessou-as ao chão. A Dama da Noite estremeceu.
Não falhara as adivinhações. Takhisis tinha de se apoderar das duas almas — e depressa.
A catástrofe aproximava-se a passos largos.
3
A cidade de Palanthas.
A busca exaustiva e nem por isso frutífera.
O estio do meio-dia derramava-se, qual lençol de óleo em chamas, nas águas da baía de Branchala. Esta era a hora mais buliçosa do dia nas docas de Palanthas e coincidiu com a chegada da embarcação de Usha, que foi se diluir no aglomerado que apinhava o porto. Não habituada a tal calor, barulho e confusão, Usha permaneceu sentada no barco, que ia oscilando, e, desanimada, olhou ao redor.
Enormes galeras mercantis, com tripulações de minotauros, roçavam os flancos contra as grandes embarcações de pesca, tripuladas pelos humanos de pele negra do Norte de Ergoth. Lanchas “mercantis” menores saltitavam e afocinhavam, forçando caminho por entre o aglomerado. E quando embatiam contra embarcações maiores, desencadeavam uma tempestade de maldições e o arremesso ocasional de baldes com água imunda ou cabeças de peixe. Para aumentar a confusão, acabara de entrar no porto um navio de gnomos. Os outros navios apressaram-se a levantar âncora, esforçando-se por interpor entre si e os gnomos uma barreira de mar tão vasta quanto possível. Ninguém em seu perfeito juízo arriscaria a vida mantendo-se perto da monstruosidade ambulante que gorgolejava vapor. O capitão do porto, no seu barco especialmente pintado, velejava de cá para lá, e esfregando a cabeça suada e calva, gritava, através de uma trompa falante, ordens aos comandantes.