Usha não gostava do olhar dele. Apertando a bolsa com a mão, cingiu-a mais ao corpo. — O que te dei chega para poder guardar o barco?
— Oh, Menina, claro que sim! Durante o tempo que quiser! Vou cuidar muito bem dele! Lavarei os conveses, que acha? As lapas, retiro-as? E as velas, devo remendá-las?
— Faça como quiser, senhor. — Usha começou a afastar-se, encaminhando-se para a costa e para os grandes edifícios que a orlavam.
— Quando vem buscá-lo? — inquiriu o duende, dando corridinhas com as pernas curtas, a fim de se manter ao lado dela.
— Não sei — respondeu Usha, procurando disfarçar a confusão e parecer despreocupada e segura. — Só quero que o barco esteja aqui quando eu voltar.
— Vá descansada, menina, que estará. O guardarei bem — respondeu o duende. Usha viu-lhe os dedos de uma das mãos sujas agitarem-se, como se ele estivesse fazendo contas. — Talvez haja alguns encargos adicionais...
Encolhendo os ombros, Usha prosseguiu o caminho.
— Platina! — ouviu o duende dizer, com um suspiro cobiçoso. — com um rubi!
Usha esquivou-se das autoridades portuárias de Palanthas simplesmente porque não fazia a mínima idéia de quem se tratava nem do que deveria lhes dizer a seu respeito ou porque se encontrava em Palanthas. Passou pelos guardas e dirigiu-se para a parte reconstruída da muralha da cidade revelando um tal aprumo e perfeito autodomínio que não deu tempo a nenhum deles, obviamente atarefados, para a deterem ou interrogarem-na. Parecia ter o pleno direito de se encontrar ali.
O aprumo revelado não passava de inocência. O autodomínio era como que um invólucro de gelo, a ocultar o seu terror e confusão.
Passou as horas seguintes a perambular pelas ruas de Palanthas, quentes, poeirentas e apinhadas de gente. Avistava, em cada esquina, algo que lhe inspirava espanto, terror, deslumbramento ou repulsa. Não fazia a mínima idéia para onde se dirigia nem o que estava fazendo, a não ser que tinha que encontrar esse tal Lorde Dalamar. Depois, devia descobrir um lugar onde pernoitar.
O Protetor fizera umas quantas alusões vagas sobre “alojamentos”, “trabalho”, ganhar “dinheiro”. Fora-lhe impossível ser mais específico. No decurso da sua longa vida, o contato do Protetor com os humanos fora bastante limitado, e embora ouvisse falar de conceitos como “ganhar o sustento”, possuía uma idéia muito vaga do que tal significava.
Com Usha passava-se o mesmo.
Examinava tudo com ar incrédulo e aterrorizado. Os edifícios ornamentados — tão diferentes das casinhas térreas e simples dos Irdas — pairavam, sobranceiras, acima dela, mais altos do que os pinheiros. Viu-se perdida numa floresta de mármore. E as pessoas, tantas! Num minuto viu mais gente em Palanthas do que em toda a sua vida passada entre os Irdas. E todas aquelas pessoas pareciam frenéticas, aos encontrões e empurrões, andando muito depressa, com a cara ruborizada e uma respiração arquejante.
No início, receosa, interrogou-se se a cidade estaria passando alguma por alguma emergência. Quiçá a guerra. Mas, quando o inquiriu a uma jovem que retirava água de um poço, Usha ficou sabendo tratar-se apenas do “dia do mercado” e que a cidade se encontrava especialmente calma — possivelmente devido ao forte calor.
Junto à baía sentira o calor. O sol, ao refletir-se nas águas, queimava a pele clara de Usha, mesmo à sombra. Mas nas docas, ao menos, sentira o toque fresco da brisa vinda do oceano aflorá-la. A cidade propriamente dita nunca chegava a experimentar este bálsamo. Palanthas sufocava. O calor emanava das ruas pavimentadas, e para quem as percorria era como se caminhasse sobre uma chapa de ferro em brasa. Mesmo assim, comparadas com o interior das lojas e das casas, as ruas eram frias. Os proprietários, impossibilitados de abandonar os estabelecimentos, abanavam-se e esforçavam-se para não cochilar. Os pobres abandonavam as casas sufocantes, viviam e dormiam nos parques ou no alto dos telhados, na esperança de serem bafejados pela mais tênue aragem. Os ricos permaneciam nas suas residências com paredes de mármore, bebiam vinho morno (não havia gelo, pois a neve dos cumes das montanhas derretera quase toda) e, languidamente, queixavam-se do calor.
O fedor de tantos corpos suados e em tão grande promiscuidade, do lixo e dos detritos a torrar ao sol, deixavam Usha sem respiração. Interrogou-se como podia haver gente capaz de suportar uma atmosfera tão horrível, mas a garota lhe dissera tratar-se apenas do cheiro de Palanthas na época de Verão.
Usha percorreu toda Palanthas, andou por caminhos infindáveis. Passou por um grande edifício, e quando a informaram tratar-se “da Grande Biblioteca”, ocorreu-lhe que o Protetor a citara, em tom respeitoso, como a fonte de todo o conhecimento sobre todas as coisas do mundo.
Supondo-a lugar adequado para indagar sobre o paradeiro de Lorde Dalamar, Usha deteve o jovem de hábito castanho que passeava pelos recintos da Grande Biblioteca e pediu-lhe a informação. Arregalando os olhos, o monge afastou-se cerca de seis passos de Usha e apontou para uma rua.
Seguindo as indicações prestadas, Usha percorreu uma alameda e foi desembocar nas sombras projetadas por uma torre de aspecto medonho, rodeada por um bosque de árvores escuras. Embora momentos antes se encontrasse encharcada de suor, percorriam-na agora súbitos calafrios. Parecia que emanavam trevas úmidas e frias dos bosques. Tremendo, deu meia volta e afastou-se precipitadamente, experimentando um verdadeiro alívio quando sentiu o bafo asfixiante do sol de novo. Quanto a Lorde Dalamar, pensou que o monge se enganara. Era impossível alguém viver num lugar tão tenebroso.
Passou por um belo edifício que, segundo a inscrição, constituía um templo dedicado a Paladino. Atravessou parques e cruzou com as casas dos ricos, magníficas e, no entanto, com um aspecto estéril (Usha tomou-as por museus). Passou por lojas cheias de objetos prodigiosos que iam desde jóias faiscantes a espadas e armaduras idênticas às que os cavaleiros envergavam. E, onipresentes, as hordas de pessoas.
Perdida e confusa, sem saber bem porque fora enviada para aquela cidade alucinante, Usha prosseguiu a sua perambulação pelas ruas. Enfraquecida pelo calor e pelo cansaço, só gradualmente se deu conta de pessoas que a fitavam à passagem. Algumas chegavam até a parar, boquiabertas de espanto. Outras, homens em geral, que trajavam com elegância — tiravam o chapéu enfeitado de penas e sorriam-lhe.
Naturalmente Usha presumiu que zombavam do seu aspecto e considerou-o uma grande crueldade. Suja, infeliz, cheia de autocomiseração, admirou-se do Protetor ter a coragem de enviá-la para aquele lugar tão detestável. Mas, gradualmente, notou que os olhares, os cumprimentos com o chapéu e as vênias eram de admiração.
Com a vaga percepção da viagem ter lhe alterado o aspecto, Usha deteve-se para se examinar no vidro da vitrine de uma loja. O vidro era ondulado e distorcia-lhe o rosto, mas o mesmo acontecia com a água do pequeno lago que, na sua terra natal, costumava utilizar como espelho. Não mudara. O cabelo conservava a aparência da madeixa de linho, os olhos mantinham a tonalidade peculiar, as feições ainda eram regulares, embora lhes faltasse a beleza requintada, típica dos Irdas.
“Que gente mais estranha”, disse Usha para consigo mesma ao ver um homem bater contra uma árvore, tão absorto estava a contemplá-la.
Por fim, quando quase gastara as solas das botas de couro, Usha reparou que o Sol se punha e que as sombras dos edifícios se tornavam mais longas e um pouco mais frescas. O afluxo de gente nas ruas começou a diminuir. As mães assomavam às soleiras das portas, gritando aos filhos para voltarem para casa. Ao espreitar pelas janelas de várias casas de belo aspecto, Usha viu as famílias reunirem-se. Sentiu-se exausta, esgotada, sozinha. Não tinha lugar onde pernoitar e deu-se conta da fome que a atazanava.