O Protetor arranjara-lhe mantimentos para a viagem, mas comera tudo antes de ancorar em Palanthas. Felizmente, porém, nas suas perambulações fora parar na parte mercantil da cidade.
Os vendedores preparavam-se para fechar os quiosques e cuidar da vida. Uma das dúvidas de Usha prendia-se com a forma como as pessoas obtinham comida nesta cidade alucinante. Agora sabia a resposta. Ao que parece, as pessoas, em Palanthas, não serviam os alimentos à mesa. Distribuíam-nos nas ruas. Usha considerou o fato peculiar, mas naquela cidade tudo era peculiar.
Passou junto de uma tenda onde avistou algumas peças de fruta esquisitas. Por estarem expostas ao sol o dia inteiro, as mesmas encontravam-se murchas e ressecadas, mas achou-as deliciosas. Pegando em várias maçãs, Usha mordeu uma delas, devorou-a e encheu uma das bolsas com as restantes.
Afastou-se dos vendedores e, deparando com um padeiro, complementou a refeição com uma fatia de pão. E quando olhava em volta, em busca de uma tenda que oferecesse vinho, ouviu, em torno de si, um burburinho desusado.
— Pega! Pega! Ladra! Ladra!
4
O assalto.
Usha é feita prisioneira.
Tasslehoff fica surpreendido.
Usha olhou, estupefata, para o homem alto e magro, com um avental de couro, que saltitava e se balançava em volta dela.
— Ladra! — gritou este, apontando para a jovem. — Me roubou as frutas!
— Foi embora levando meu pão! — exclamou, ofegante, uma mulher salpicada de farinha, que viera correndo atrás do homem. — Aí está, saindo da sua bolsa! Devolva-me já, sua leviana!
A padeira tentou recuperar o pão. Usha deu-lhe uma palmada na mão. A mulher começou a guinchar:
— Assassina! Tentou me matar!
Os ociosos e os alcoviteiros que geralmente perambulavam pelo mercado para beberem generosos tragos de vinho e procurarem confusão, acorreram a intrometer-se e Usha viu-se rodeada por uma multidão escarnecedora. Um homem esfarrapado e de aspecto grosseiro conseguiu manietá-la.
— Ofereço-me para inspecioná-la! — berrou. — Desconfio que meteu as maçãs na blusa!
A multidão soltou uma gargalhada e estreitou cerco.
Usha nunca sofrera um tratamento tão bárbaro. Tratada com grandes mimos, acarinhada, educada entre uma sociedade de pessoas que nunca erguiam a voz, e os punhos muito menos, o choque quase a deixou sem sentidos. Não possuía armas e, no pânico inicial, nem lhe ocorreu utilizar os objetos mágicos que os Irdas lhe tinham dado. De qualquer maneira, não saberia utilizá-los, pois quase não prestara atenção às instrução que estes lhe transmitiram.
Sentiu as mãos sujas do homem rasgarem-lhe a blusa e os dedos dele tentaram tocar-lhe a carne. Os comparsas incentivavam-no.
O pânico deu lugar à fúria. Usha sentiu-se avassalada pela ferocidade de um animal encurralado. Investiu com fúria, o terror redobrou-lhe as forças. Bateu, mordeu, desferiu pontapés, sem saber quem atacava, nem lhe interessava, queria apenas magoar a todos, investir contra todos os seres vivos que enchiam aquela cidade detestável.
Só quando mãos possantes lhe agarraram o braço, o prenderam e lhe deram um torção doloroso e uma voz firme e clara exclamou: — Pare já com isso, jovem! —, é que a névoa de sangue que lhe toldava os olhos se desvaneceu.
Usha pestanejou, a respiração veio-lhe aos haustos. Espreitou em redor, com ar desorientado.
Quem a segurara fora um homem alto e musculoso, vestido com uma pesada túnica carmesim e polainas e um aspecto de quem exerce um cargo oficial. À sua chegada, a multidão apressou-se a dispersar, tecendo comentários variados e pitorescos a respeito de guardas que lhes estragavam a diversão. O homem que a incomodara jazia no chão, a grunhir e agarrado às partes íntimas.
— Quem começou isto? — inquiriu o guarda, dardejando o olhar pelos presentes.
— Excelência, ela roubou pão do meu quiosque — disse a padeira aos gritos —, e depois tentou nos assassinar!
— Comeu as maçãs! — acusou o vendedor de fruta. — Pegou-as e foi embora na calma!
— Não era minha intenção roubar nada! — protestou Usha, fungando um pouco. Quando estava em apuros, as lágrimas tinham sempre funcionado com o Protetor, e depressa caiu nos velhos hábitos. — Achei que a fruta e o pão estavam expostos para quem quisesse levá-los. — Limpou os olhos. — Não tencionava magoar ninguém. Sinto-me cansada, estou perdida, tenho fome e depois aquele homem... tocou-me...
A horrível lembrança, fez com que vertesse lágrimas genuínas. O guarda olhou-a com uma expressão desamparada e tentou reconfortá-la.
— Ora, ora, não chore. Provavelmente o calor a perturbou. Dê a estes dois um pagamento justo e ficamos todos quites. Não ficamos? — acrescentou o guarda lançando um olhar carrancudo aos dois vendedores, que o retribuíram, mas acenaram com a cabeça, aquiescendo de má vontade.
— Não tenho dinheiro nenhum — respondeu Usha, engolindo em seco.
— Cabra! — atirou o homem.
— Pior do que isso! — acrescentou a mulher, com uma fungadela. — Salta à vista que deve ser uma ricaça! Olhem para essas roupas exóticas! Quero que a metam no cepo e lhe dêem umas boas chicotadas!
O guarda pareceu ficar aborrecido, mas não lhe restavam muitas opções. O pão que estivera na origem da discórdia, durante a briga caíra da bolsa de Usha e jazia no chão. Da jovem vinha um cheiro de maçã triturada e muito madura.
— Temos que resolver o assunto na presença do magistrado. Venha comigo, jovem. E vocês dois, se querem ser reembolsados, é bom que nos acompanhem também.
O guarda afastou-se, levando Usha consigo. Os dois vendedores seguiram-nos, a mulher toda empertigada com ar de justa indignação, o vendedor de maçãs constrangido e interrogando-se se a brincadeira não lhe iria custar dinheiro.
Entorpecida e exausta, Usha não prestou grande atenção para onde a levavam. Cabisbaixa, ia caminhando aos tropeções ao lado do captor, desejando nada mais ver daquele lugar horroroso. Quase não se deu conta de que deixara para trás as ruas e franqueava um grande edifício, todo construído em pedra, com uma porta enorme de madeira maciça vigiada por mais homens com túnicas carmesins idênticas às do guarda. Estes lhes abriram a porta e ele fez a jovem entrar.
Comparada com a claridade ofuscante e o calor das ruas, a sala com paredes de pedra para a qual foi conduzida parecia irradiar uma penumbra e uma presença balsâmicas. Usha levantou a cabeça e olhou ao redor. O guarda estava discutindo com os dois vendedores. Usha ignorou-os. Embora se tratasse de um assunto que lhe dizia respeito, parecia que nenhum destes tinha a mínima relação com a sua pessoa. Integravam aquela cidade horrível que abandonaria mal entregasse a carta.
Sentado a uma mesa e parecendo incomodado com o assunto, encontrava-se um homem corpulento que escrevia algo num livro de páginas ensebadas. Por trás dele, avistava-se uma sala enorme, apinhada de pessoas sentadas no chão frio de pedra ou dormindo. Numerosas grades de ferro, pregadas ao teto e ao chão, separavam as que se encontravam no interior das que esperavam no exterior.
— Carcereiro, tem mais uma aqui. Praticou um roubo menor. Tranque-a com o resto do grupo até o magistrado ouvir amanhã e caso dela — disse o guarda.
O grandalhão ergueu a cabeça e, ao avistar Usha, os seus olhos arregalaram-se.
— Se o Grêmio dos Ladrões anda recrutando gente com o aspecto dela, vou já me associar! — exclamou em voz baixa ao guarda. — Ora bem, menina, vai ter que deixar essas bolsas aos meus cuidados.
— Quê? Porquê? Não toque nelas! — Usha apertou fortemente contra si os valiosos pertences.
— Hão de devolvê-las — assegurou-lhe o guarda com um encolher de ombros. — Olhe, jovem, não procure mais confusão, já a tem de sobra.
Usha teimou em segurar os alforjes. O grandalhão franziu o cenho e disse qualquer coisa sobre tirá-los à força.