— Não, não me toque! — exclamou Usha e, relutante, libertou-se dos dois alforjes — o menor continha as roupas e o maior as prendas — e pousou-os na escrivaninha diante do carcereiro.
— Devo avisá-lo — disse numa voz embargada pela raiva — de que alguns objetos desta bolsa são mágicos, pelo que é melhor tratá-los com respeito! Trago também comigo um rolo de pergaminho que devo entregar a alguém conhecido por Lorde Dalamar. Desconheço quem é esse Senhor Dalamar mas tenho certeza de que lhe desagradaria saber que andou bisbilhotanto nas coisas.
A esperança de Usha era conseguir impressionar os captores, e assim foi mas não conforme previra. O carcereiro, que se pusera a vasculhar as bolsas com ar cobiçoso, retirou precipitadamente a mão, como se estas fossem possivelmente uma invenção qualquer dos gnomos, prestes a explodir a qualquer momento.
— Desisto de todas as queixas! — gritou o vendedor, fugindo às pressas.
— Uma bruxa — murmurou a padeira, mantendo-se onde estava. — Eu bem que desconfiava! Pois que seja queimada viva no poste!
— Já não fazemos essas coisas — resmungou o carcereiro, mas via-se que estava pálido e abalado. — Dalamar, você disse?
— Disse sim. — Usha ficara bastante assustada com toda a agitação, mas ao perceber que o nome se revestia de um certo significado para aquela gente, decidiu tirar proveito disso. — E é melhor que me tratem bem, caso contrário Lorde Dalamar ficará aborrecido.
Os dois homens puseram-se a conferenciar em voz baixa.
— Que vamos fazer? — sussurrou o carcereiro.
— Mande-a à Dama Jenna. Ela saberá como proceder — replicou o guarda.
— Meto-a nas celas?
— Quer que ande por aí à solta?
A conversa terminou com Usha sendo escoltada — de forma respeitosa — para a grande sala que ficava por trás das grades de ferro. Viu-se, quase de imediato, rodeada pelo que de início julgou tratar-se de crianças humanas. Interrogava-se sobre que crimes poderiam ter cometido quando ouviu o carcereiro praguejar.
— Afastem-se, seus kenders danados! E essa agora? Onde estão as minhas chaves? Ah, seus malandros! Devolvam já! Menina, veja se descobre um lugar para se sentar! — gritou-lhe o carcereiro, ao mesmo tempo em que fazia menção de agarrar os kenders. — Logo virá alguém. E o que está fazendo com o meu cachimbo? E você, devolva-me essa bolsa ou juro por Gileano que...
Murmurando e praguejando, o carcereiro abandonou a cela, aliviado por regressar à sua escrivaninha.
Então, aqueles eram kenders? Usha sentiu interesse em conhecer as pessoas que o Protetor alcunhara de “os alegres ladrões de Krynn”. Tal não constituía problema pois os kenders, sempre tão curiosos, apreciavam entabular contato com qualquer forasteiro que fosse colocado no que consideravam a prisão “deles”.
Falando todos ao mesmo tempo, fazendo-lhe 30 perguntas no espaço de cinco segundos, os kenders pareciam abelhas enxameando em volta dela, tagarelando, soltando risadinhas, tocando e dando palmadinhas. O barulho, a algazarra, o calor, o medo e a fome que Usha sentia — de repente, tudo se tornou insuportável. A sala começou a girar e a inclinar-se. Estrelas cintilantes fenderam o ar.
Quando Usha deu por si, encontrava-se deitada no chão, olhando para o rosto ansioso de um dos kenders. Este parecia mais velho do que os restantes. Tinha os olhos sulcados de rugas, que também lhe repuxavam a boca. O cabelo, grisalho, penteado em penacho, chegava-lhe aos ombros. O rosto era agradável, amistoso e com o misto de curiosidade que caracterizavam o de uma criança ou o de todos os outros kenders, mas parecia mais adulto do que o restante.
Quando outro dos kenders se aproximava muito, o mais idoso escorraçava-o. Até os elementos mais grosseiros da população humana encarcerada na cela pareciam respeitá-lo, pois também se mantinham à distância.
— Que aconteceu? — perguntou Usha, debatendo-se para se levantar.
— Desmaiou — explicou o kender. — E para ser sincero, acho que devia permanecer mais algum tempo deitada. Nunca desmaiei, pelo menos não me lembro de ter acontecido. Um dia gostaria de experimentar, mas nunca consegui. Como se sente? O guarda disse que provavelmente desfaleceu porque está sem comer a algum tempo e andou dando voltas por aí. Bem que se percebe! Tem fome? Dentro de cerca de uma hora nos trazem algum pão e sopa. A comida aqui é boa. A prisão de Palanthas é excelente, a melhor que há em Ansalon. Tem uns olhos extraordinários! São meio que dourados, não é? Parece-me familiar, disso estou certo, já nos conhecemos? Alguma vez esteve em Consolação?
— Acho que não — respondeu Usha em tom fatigado. A tagarelice do kender era reconfortante, mas o seu interminável interrogatório deixava-a confusa. — Nunca ouvi falar de Consolação.
Sentia-se péssima. A cabeça doía-lhe e a fome provocava-lhe contrações no estômago. O Protetor recomendara-lhe circunspecção com os kenders, mas este constituía a primeira pessoa que lhe falava com bondade. Olhando ao redor, reparou que a sua cabeça repousava no que provavelmente era a capa do kender — a avaliar pelo tom verde-vivo, o mesmo das calças que este usava.
Usha sentiu-se grata, e forçando um sorriso perguntou:
— Quem é você?
O kender pareceu chocado e, com uma expressão contrita, respondeu:
— Não me apresentei? Acho que não. Ia fazê-lo quando desmaiou — Estendeu-lhe a mão, pequena e castanha como uma noz. — Chamo-me Tasslehoff Pés Ligeiros. Todos os meus amigos me chamam de Tas. Como se chama?
— Usha — respondeu ela, retribuindo solenemente o aperto de mão.
— Só Usha? A maior parte dos humanos que conheço possuem dois nomes.
— Só Usha.
— Seja como for, é um nome bonito. Mais bonito do que dois nomes juntos — O kender examinava-a com ar pensativo. — Sabe, Usha, na realidade você me lembra alguém. Mas quem será?
Usha desconhecia e nem se importava. Sentindo-se protegida pelo novo amigo, fechou os olhos, descontraiu-se e mergulhou no sono.
Quando os frangalhos da sua consciência se envolviam no torpor, ouviu o kender murmurar em tom respeitoso:
— Descobri! Possui olhos dourados... tal como Raistlin!
5
A feiticeira.
A Dama Jenna fica surpreendida.
Um cheiro de sopa quente arrancou Usha do seu torpor. O breve repouso fez com que se sentisse melhor. Apoiando-se à parede de pedra, bebeu o caldo de galinha de uma tigela de louça lascada e interrogou-se sobre o que lhe iria acontecer a seguir. Pelo menos arranjara lugar onde pernoitar.
Anoitecera. A cela encontrava-se mergulhada na escuridão, apenas quebrada pelos clarões bruxuleantes de alguns archotes colocados na parede que dava acesso à prisão.
Tas, o kender, depois de beber a sopa, estendeu a Usha o seu naco de pão escuro, dizendo:
— Toma, parece estar com fome ainda.
Usha, que devorara o seu em três dentadas, hesitou.
— Tem certeza que não o quer? — perguntou. Tas abanou a cabeça.
— Não, não há problema — respondeu. — Se sentir fome, descubro algo para comer nos meus bolsos. — E apontou para várias bolsas protuberantes que lhe cingiam o corpo magro.
Usha franziu o cenho.
— Como conseguiu ficar com as tuas coisas? Eles ficaram com as minhas.
— Oh, é o procedimento normal — respondeu Tas com um encolher de ombros. — Não sei porquê, nunca tiram nada de nós, os kenders. Talvez por não terem espaço para guardá-las. Durante as nossas viagens, costumamos arrecadar coisas. Ou talvez porque de manhã se torna difícil determinar a quem pertencem. Não que isso nos interesse particularmente. Nós... — e com um gesto indicou os restantes membros da sua raça, que atiravam pão uns nos outros —, partilhamos tudo.