A loja de magia de Jenna situava-se na parte mais favorecida da Cidade Nova, para grande desagrado dos proprietários de estabelecimentos das redondezas, que encaravam com profunda desconfiança a clientela arcana que afluía ali. Sabia-se que Jenna era favorita de Dalamar, o Senhor da Torre da Feitiçaria Suprema. E embora o Senhor de Palanthas fosse a autoridade incontestável da cidade, nenhum cidadão se atrevia a provocar a ira do Senhor da Torre.
Assim, os mercadores resmungavam contra Jenna, mas faziam-no em surdina.
Ao chegar à loja de magia, assinalada com uma tabuleta onde se via a imagem das três luas — a prateada, a vermelha e a negra —, Jenna tomou primeiro a precaução de atar as mãos do kender com uma corda de seda. Só depois é que desfez o encantamento que guardava a porta e empurrou os convidados para o interior.
— É mesmo necessário? — perguntou Usha com indignação, apontando para os pulsos amarrados do kender — Fique sabendo que ele não é nenhum ladrão!
Jenna olhou fixamente para Usha e ergueu as sobrancelhas. Usha, tentando imaginar o que dissera de tão notável, corou e mordeu o lábio.
— Não me importo, a sério! — interveio alegremente Tas, admirando a corda de seda que lhe cingia os pulsos. — Estou habituado.
— Fiz mais para a nossa proteção e a dele do que pela preocupação de perder dinheiro — replicou Jenna. Pronunciou uma palavra que, aos ouvidos de Usha, soou como pedaço de gelo quebradiço estalando, e de uma candeia da sala emanou um clarão de luz. Lançando um olhar penetrante à jovem, acrescentou: — Não está familiarizada com os kenders, não é?
Usha tentou freneticamente lembrar-se do que o Protetor lhe contara, lamentando não ter prestado mais atenção. Optou por fingir, embora experimentasse a opressiva sensação de estar desperdiçando tempo. — Que pergunta mais estranha! Claro que conheço tudo o que é preciso saber sobre os kenders. Não é assim com todos os que vivem em Ansalon?
— Infelizmente sim. Foi por isso que perguntei. Por aqui. Deixe isso aí! — ordenou Jenna a Usha em tom cortante. Esta detivera-se para pegar e examinar uma linda garrafa. — Uma gota disso na tua pele e a tua carne se desfaz em pedaços! Pelo que é, não toque em nada! É pior que um kender! Vocês dois, acompanhem-me.
Cautelosamente, Usha voltou a colocar a garrafa na prateleira. Enclavinhou as mãos atrás das costas e apressou o passo, esforçando-se para ver tudo de uma só vez. A principal impressão que lhe ficou da loja foi o cheiro, convidativo e ao mesmo tempo repugnante. Viam-se boiões de especiarias e de ervas de cheiro penetrante alinhados junto de boiões que continham coisas mortas e apodrecidas. Nas prateleiras, que forravam uma parede inteira, encontravam-se cuidadosamente dispostos livros de feitiços, alguns deles antigos e bolorentos. Havia cofres de vidro, que guardavam jóias cintilantes.
— O meu laboratório fica no porão — disse Jenna, abrindo uma porta. — Estão proibidos de tocar no que quer que seja lá também!
A porta, assinalada por símbolos estranhos e indecifráveis, desembocava num vão de escadas. Jenna escoltou Tasslehoff pessoalmente, segurando-lhe o penacho e dando-lhe uma dolorosa torcida sempre que o via tentado bisbilhotar algo. Fez sinal a Usha para que descesse as escadas depois deles.
O laboratório situava-se por baixo da loja, num piso subterrâneo. Ao entrarem, acendeu-se uma luz, mas esta era tênue, fantasmagórica, e irradiava um fraco clarão. Usha viu-se forçada a descer as escadas com precaução.
— Ora bem, vocês dois vão ficar aqui mesmo, sem se mexer! — ordenou Jenna, quando chegaram ao andar térreo. Desapareceu então nas sombras, e passado algum tempo a ouviram falar em voz baixa, indistinta, com alguém.
Usha segurou Tasslehoff pelo colarinho da sua camisa verde no exato instante em que este pretendia se afastar.
— Ela disse para não nos mexer! — ralhou.
— Desculpe — respondeu-lhe Tas num sussurro. Parecia realmente, contrito. — Não fiz por querer. São os meus pés. A minha cabeça diz para não se mexerem mas, por vezes, o que a minha cabeça pensa quase não vale nada. Parece que os pensamentos se interrompem ao nível dos meus joelhos. Mas não acha tudo isto terrivelmente excitante? Olhe para aquilo! — O terror cortou-lhe a respiração. — É uma caveira humana! Acho que ela não vai se importar se eu...
— Sim, acho que ela vai se importar! — gritou Usha zangada. — Fique quieto! — Continuou a segurar Tas. Não que a preocupasse de verdade o fato dele desobedecer a Jenna, mas necessitava desesperadamente de alguém a quem se agarrar.
— Estou contente por ela tê-lo trazido — acrescentou Usha num tom impulsivo —, embora na verdade não entenda bem porquê. Pareceu-me que a tua presença lhe desagradava.
— Oh, não tinha muita opção — respondeu Tas com um encolher de ombros. — Não depois do que mencionei a respeito de Raistlin.
— E o que queria dizer com aquilo... de eu me parecer com Raistlin? Não entendo. Quem é Raistlin?
— Quem é Raistlin? — repetiu Tasslehoff, e na sua estupefação esqueceu-se de baixar a voz. — Nunca ouviu falar de Raistlin Majere? Acho que todo mundo em Ansalon conhece Raistlin!
Percebendo que fizera asneira, Usha soltou uma risadinha.
— Oh, esse Raistlin! Ora, claro que ouvi falar dele. Só não sabia a qual Raistlin se referia. De onde eu venho, o nome Raistlin é muito comum. Na nossa aldeia vivem diversas pessoas chamadas Raistlin. É alto, não é?
— Acho que não — respondeu Tas com ar pensativo. — O Raistlin não era elfo e com toda a certeza o Caramon também não! Se o cortasse em fatias, a altura de Caramon perfaria, à vontade, três elfos. E depois temos a questão dos gêmeos, e se bem me lembro, gêmeos é coisa rara entre os elfos. Faz muito tempo que visitei Qualinesti. Embora eu conhecesse o novo Orador do Sol, o Gil, o filho de Tanis, não me permitiram cruzar a fronteira. Já ouviu falar de Tanis Meio Elfo, não ouviu?
— Quem não ouviu! — exclamou Usha, embora desconhecendo por completo de quem se tratava.
Pelo menos descobrira que Raistlin era um “ele”, algo do qual não estava bem certa. E que tinha uma relação qualquer com um indivíduo chamado Caramon. Congratulando-se com a sua esperteza, preparava-se para formular a pergunta seguinte quando Jenna voltou.
— Ela sabe quem é Raistlin! Não permita que ela te engane, kender. Agora venham, os dois. Estive falando com Dalamar e...
— Dalamar! Ele se encontra aqui? — Tasslehoff pôs-se a assobiar e a acenar com a mão. — IU-U! Sou eu, o Tas! Lembra-se de mim? Eu....
— Ele não se encontra aqui — interrompeu-o Jenna em tom ríspido e frio. — Não se encontra na torre. Eu e ele possuímos outros meios de comunicação. Ora bem, vêem aquele círculo de sal no chão?
Usha não conseguiu vislumbrá-lo. A penumbra que reinava impediu-a até de ver o chão. Nesse momento, porém, a luz da candeia intensificou-se, ficando o círculo bem à vista.
— Entrem lá para dentro com cuidado — ordenou Jenna. — Certifiquem-se de que não perturbam o sal.
— Já sei! — gritou Tas, preso de grande excitação. — Eu vi o Par-Salian fazer isso com o Caramon! Foi daquela vez em que, por acidente, me transformei em rato. Acontece, Usha, que me encontrava na Torre de Wayreth e me deparei com aquele anel branco com duas pedras vermelhas... meti-o no dedo e...
— Tenha tento na língua, pelo amor de Gileano! — interrompeu-o Jenna. — Senão sou eu quem te transforma num rato! E depois me transformo num gato!