— É mesmo capaz? Que tipo de gato? — Tas não parava de tagarelar. — E se em vez disso me transformasse num gato? Nunca fui gato...
— Vocês dois, peguem em minhas mãos — prosseguiu Jenna, ignorando o kender. — Fechem os olhos, assim não ficam tontos. E, aconteça o que acontecer, não larguem minhas mãos.
Proferiu então umas palavras que se insinuaram na cabeça de Usha e ali ficaram a rodopiar. De repente, parecia que o chão cedia e com ele o estômago de Usha. Experimentou a pavorosa sensação de ser fustigada pelo vento. Aterrorizada, segurou com força a mão da feiticeira, largá-la seria a última coisa que faria.
Depois, sentiu solo firme debaixo dos pés. O som e a sensação de vento desapareceram. A escuridão também. Uma luz brilhante obrigou-a a cerrar os olhos.
— Já pode olhar — chegou-lhe a voz de Jenna. — Chegamos. Encontrou a Torre da Feitiçaria Suprema, em Palanthas a salvo.
Usha não tinha certeza se desejava abrir os olhos. A avaliar pela descrição do kender, esta Torre da Feitiçaria devia ser um lugar endemoninhado, pavoroso. Tasslehoff já falava entusiasticamente com alguém, que lhe respondia no tom polido mas distraído de quem pensa noutra coisa.
— Abra os olhos, Usha — repetiu Jenna em tom severo. Pestanejando, Usha obedeceu e ficou estupefata por dar consigo não numa câmara de horrores, com corpos acorrentados e algemados suspensos em paredes, mas numa sala lindamente decorada. As paredes de pedra encontravam-se cobertas com tapeçarias que representavam animais fantásticos. Vários tapetes com padrões belos e intrincados cobriam o assoalho. Usha nunca vira tanta mobília reunida num único lugar.
— Bem-vinda, Usha. Bem-vinda à minha torre — disse uma voz.
Usha virou-se para o que, a avaliar pela descrição de Prot, só podia ser um elfo. Alto e esbelto, com feições cuja beleza quase rivalizava a dos Irdas, o homem envergava vestes negras macias, decoradas com símbolos cabalísticos.
— Sou Dalamar — disse o elfo.
Possuía uma voz doce, cristalina e sedutora como a música de uma flauta. Ao encaminhar-se para ela, viu-lhe os movimentos graciosos, fluidos, sinuosos. O seu cabelo era escuro e macio e caía-lhe pela altura dos ombros. Sentiu-se encantada com ele, cativada, até que o olhou nos olhos. Estes apanharam-na, agarraram-na, começaram a absorvê-la. Assustada, tentou desviar os seus, mas aqueles recusaram-se a libertá-la.
— Esses alforjes parecem pesados. Deixe que os pegue — sugeriu Dalamar.
Sem pensar, Usha entregou-lhe os alforjes.
— Está tremendo, minha querida — observou Dalamar em tom apaziguador. — Não receie. Não pretendo lhe fazer mal, muito pelo contrário. Sente-se por favor. Quer que te sirva um pouco de vinho? Comida?
Com um gesto, indicou uma mesa, e com esse gesto, libertou Usha do encantamento do seu olhar. A jovem examinou de relance a mesa. Cheiros tentadores emanavam de recipientes cobertos. O clarão vivo de um candelabro fazia reluzir taças contendo fruta gelada. Tasslehoff, que já se instalara, levantava as tampas e fungava, deliciado.
— Isto parece bom mesmo. Estou com fome. E você não tem, Usha? Não entendo porquê. Só comi há uma hora. Mas o estômago não retém por muito tempo a sopa da prisão. Não estou criticando a sopa de Palanthas! — acrescentou Tas olhando, ansioso, para Dalamar. — Não vai lhes contar que eu não gostei, não é? A acho bastante saborosa, na verdade. Não pretendo ferir os sentimentos do cozinheiro.
— Não direi uma palavra — prometeu Dalamar com um grande sorriso. — Só espero que o meu pobre repasto esteja bom. Frango assado, pão, fruta, doces, nozes com açúcar... é tudo o que posso oferecer a esta hora tardia da noite.
De repente, Usha sentiu-se completamente esfomeada.
— Parece uma maravilha! — exclamou, e antes de se aperceber do que fazia, afundou-se numa das cadeiras confortáveis e começou a encher o prato de comida.
— Nunca me senti com tanta fome na vida — confidenciou a Tas.
— Eu também não — murmurou ele em tom incoerente, depois de enfiar na boca uma maçã assada inteira. Com um esforço tremendo, mastigou, engoliu e serviu-se de mais. — Deve ser de toda esta excitação.
— Deve ser — disse Usha, mordiscando a pele tostada de um pedaço de peito de galinha assada.
O gosto era tão requintado que lhe arrancou um suspiro de prazer. Devorou o peito de galinha e serviu-se de mais. Só então percebeu que ela e Tas se encontravam sozinhos na sala.
— Onde acha que a Jenna e Dalamar foram? — perguntou Usha sem grande preocupação. Sorveu uma golada de cidra quente e condimentada, achou que nunca provara algo tão delicioso e bebeu mais dois copos.
— Sei lá! — respondeu Tas, que roía vigorosamente um naco de pão. — Não os vi sair. Mas não é coisa inusitada. Por estas bandas, as pessoas andam aparecendo e desaparecendo desta maneira a toda a hora. Olha lá, os teus alforjes também se foram.
— Pois foram! — Por um motivo qualquer, Usha achou graça ao fato.
Riu-se. Tasslehoff riu-se. As gargalhadas tornaram-nos sedentos e beberam mais cidra. A sede provocou-lhes fome e voltaram a comer... uma e outra vez.
Por fim, Usha parou e limpou as mãos em um pano limpo. Depois, recostou-se na cadeira e pediu a Tas:
— Conte-me mais coisas a respeito dessa pessoa chamada Raistlin.
Numa outra sala, Jenna espalhou o conteúdo do alforje de Usha sobre a mesa. Dalamar inclinou-se para examinar os objetos, tendo o cuidado de não tocá-los, mas avaliando-os um a um com uma expressão crítica.
— Está tudo aí — disse Jenna.
— O que há no outro alforje?
— Roupas, todas feitas de seda, como as que ela veste. Mais nada.
— Você afirma que ela mencionou algo relacionado com uma mensagem para mim.
— Foi o que ela disse ao carcereiro. Há três possibilidades: está mentindo, a tem registrada na cabeça ou entregou-a a outra pessoa.
Dalamar pôs-se a refletir.
— Duvido que esteja mentindo — disse. — Com que intenção? Obviamente não faz a mínima idéia de quem eu sou.
Jenna fungou.
— Também afirma desconhecer o nome Raistlin Majere — observou.
— É possível, se considerarmos todas as coisas. — Dalamar continuou a inspecionar o conteúdo do alforje. Colocando a mão sobre os objetos que se encontravam na mesa, estes começaram a emanar uma luz suave que em alguns era mais brilhante do que noutros. Baixando a mão, deu um suspiro de satisfação. — Tem razão. Todos eles são mágicos e alguns extremamente poderosos. E nenhum foi feito por magos de nenhuma ordem. Concorda comigo, meu amor?
— Em absoluto. — Jenna aflorou-lhe o ombro com a mão e beijou-o de leve na face.
Dalamar sorriu, mas não desviou a atenção da parafernália mágica.
— Que encantamentos estarão encerrados aqui? — observou, com uma entoação ansiosa.
Estendeu de novo a mão, desta vez na direção de uma pequena peça de âmbar, esculpida com perícia na forma de um veado. Hesitante e esboçando um esgar — como se soubesse o que ia acontecer — tocou no âmbar com a ponta do dedo.
Um clarão azulado, um som crepitante. Dalamar arquejou de dor e apressou-se a retirar a mão.
Jenna franziu os lábios e abanou a cabeça.
— Eu podia lhe dizer o que aconteceria. Foram concebidos para serem utilizados por uma única pessoa.
— Sim, também calculei.
Os dois entreolharam-se e chegaram à mesma conclusão.
— De fabricação Irda? — inquiriu Jenna.
— Sem dúvida — replicou Dalamar. — Temos alguns destes artefatos guardados na Torre de Wayreth. Reconheço a execução e... — sacudiu a mão magoada para afugentar a dor — ...os efeitos.
— Não podemos utilizá-los, mas visto que os Irdas os concederam, é óbvio que ela pode. Contudo, não lhe detectei sinais da arte.