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— Porém, algum talento deve possuir. Se for quem julgamos que é.

Jenna olhou-o espantada.

— Ainda duvida? Viu bem os olhos dela? Parecem ouro líquido! Só um homem em Krynn possuía olhos assim. Até o kender a reconheceu.

— Tasslehoff? — Dalamar interrompeu o exame aos artefatos. — É mesmo? Perguntava-me por que se arriscou a trazê-lo contigo. O que ele disse?

— Falou demais. E muito alto — replicou Jenna com voz soturna. — As pessoas começaram a reparar.

— O kender também. — Dalamar dirigiu-se à janela e perscrutou a noite, que não parecia mais do que o adensar das permanentes trevas que pairavam sobre a torre. — Será possível a lenda se revelar verdadeira?

— Que mais pode ser? É óbvio que a garota foi criada em algum lugar distante de Ansalon. Trazia consigo objetos de grande valor fabricados pelos Irdas. O kender reconheceu-a e, fato mais importante, possui olhos dourados. Deve ter a idade certa. E depois, há o fato de ter sido guiada até aqui.

Dalamar franziu o cenho, algo desagradado com a perspectiva.

— Volto a lhe recordar que Raistlin Majere morreu, disse. — Morreu há uns bons 20 anos.

— Sim, meu querido. Não se aflija. — Jenna afagou o cabelo macio de Dalamar e beijou-o com meiguice na orelha. — No entanto, aquele pormenorzinho do Bastão de Magius. Trancado no laboratório da torre. Guardado pelos mortos-vivos, com ordens para interditarem a passagem a quem quer que fosse, até mesmo a ti. Mas, quem possui o bastão agora? Palin Majere, o sobrinho de Raistlin.

— O bastão pode ter sido uma oferenda tanto de Magius como de Raistlin — disse Dalamar irritado, esquivando-se às carícias dela. — Tudo aponta para Magius, visto ser amigo do cavaleiro Huma e todos saberem que os irmãos de Palin planejavam ingressar na cavalaria. Expliquei tudo isto perante o Conclave...

— Sim, meu amor — respondeu Jenna, baixando os olhos. — Contudo, é você quem se recusa a acreditar em coincidências. Foi coincidência esta jovem ser trazida até aqui? Ou há algo mais?

— Talvez tenha razão — respondeu Dalamar, depois de refletir por um instante.

Encaminhou-se para um espelho de parede grande e com uma moldura ornamentada. Jenna foi para junto dele. Por um momento, apenas viram as suas próprias imagens. Dalamar estendeu a mão e passou-a pelo vidro. Os reflexos desvaneceram-se e foram substituídos por Usha e Tasslehoff, que comiam os alimentos encantados, bebiam a cidra encantada e riam por tudo e por nada.

— Que estranho — murmurou Dalamar, observando-os. — Julguei tratar-se apenas de uma lenda. No entanto, ali está ela sentada.

— A filha de Raistlin — disse Jenna suavemente. — Encontramos a filha de Raistlin!

7

A Estalagem da Última Casa.

Discussão entre velhos amigos.

A noite caía em Consolação. Pairava o calor que se fizera sentir durante o dia e que emanava da sujeira, das ruas e das paredes das casas. Mas pelo menos a noite afugentara o Sol tórrido e feroz que dardejava dos céus, qual olho maligno de um deus enraivecido qualquer. À noite, o olho fechava-se e as pessoas, soltando suspiros de alívio, começavam a se aventurar pelo exterior.

Aquele Verão era o mais tórrido e seco de que havia notícia em Consolação. As ruas sujas, sob o calor, abriam fendas. Pairava na atmosfera uma poeira sufocante, que se elevava sempre que uma carroça passava a troar, envolvendo o vale com o seu manto espesso. As lindas folhas das árvores gigantescas que ali se erguiam ficavam murchas e pendiam inertes e aparentemente sem vida dos galhos ressequidos, que rangiam ao vento.

Em Consolação, a vida estava virada do avesso. Em épocas normais, os dias decorriam movimentados e atarefados, as pessoas afluíam aos mercados, os agricultores trabalhavam nos campos, as crianças brincavam e as mulheres lavavam a roupa nos ribeiros. Agora, os dias pareciam vazios, sem vida, tão definhados como as folhas das árvores.

Nos campos, as colheitas, causticadas pelo braseiro do sol, murcharam e acabaram morrendo, de modo que os agricultores deixaram de ir ao mercado, e por isso a maior parte dos quiosques fechou. O calor era demais para as crianças brincarem, de modo que estas permaneciam em casa, desassossegadas, lamurientas, enfastiadas. Os ribeiros palpitantes converteram-se em poças labirínticas e lamacentas. As águas do lago Crystalmir encontravam-se inusitadamente quentes. Os peixes mortos flutuavam perto das margens. Durante o dia, raras eram as pessoas que abandonavam a relativa frescura das suas casas, preferindo sair à noite.

— Tal como os morcegos — disse, em tom soturno, Caramon Majere ao seu amigo Tanis Meio Elfo. — Todos nos transformamos em morcegos, dormimos durante o dia e voamos à noite...

— Voam por toda a parte exceto aqui — observou Tika. Postada atrás da cadeira de Caramon, abanava-se com uma bandeja. — Nem mesmo durante a guerra o negócio foi tão mau.

A Estalagem da Última Casa pairava, sobranceira, por cima dos ramos de uma árvore e encontrava-se profusamente iluminada, o que em geral constituía um farol de boas-vindas para os viajantes noturnos. Cintilando através dos vidros manchados, a luz cálida evocava imagens de cerveja fria, vinho aquecido com canela e açúcar, mel dos prados, cidra langorosa e, claro, as famosas batatas condimentadas de Otik. Mas, naquela noite, a estalagem encontrava-se vazia, como acontecia há muitas noites. Tika já desistira de atiçar o fogo do fogão. Também não fazia mal, pois o calor que fazia na cozinha era tanto que não dava para trabalhar em condições.

Os clientes já não se reuniam em volta do bar para contarem histórias da Guerra da Lança ou se deliciarem com os mexericos mais recentes. Corriam boatos de guerra civil entre os Elfos. E também rumores de que os duendes de Thorbardin haviam enviado mensagens ao seu povo para que regressassem à terra natal, caso contrário corriam o risco de ficarem de fora quando os duendes — receando um ataque dos Elfos — fechassem a fortaleza da montanha. Já não se viam vendedores ambulantes trilhando as rotas habituais. Os latoeiros já não acorriam para remendar as panelas, nem os menestréis apareciam para alegrar as pessoas com as suas canções. As únicas pessoas que, naqueles dias, ainda viajavam eram os kenders, e estes passavam em geral as noites nas celas das cadeias locais, não em estalagens.

— As pessoas sentem-se nervosas e angustiadas — observou Caramon, sentindo-se na necessidade de evocar uma desculpa qualquer que justificasse a falta de clientela. — Toda esta história de guerra. E se o calor não acabar depressa, adeus colheitas. No Inverno vai ser difícil arranjar comida. Por isso eles não aparecem...

— Eu sei, querido. Eu sei. — Tika pousou a bandeja no balcão. Colocando os braços em volta dos ombros musculosos do marido, estreitou-o contra si. — Falei por falar. Não ligue para o que eu digo.

— Como se eu nunca ligasse — respondeu Caramon, afagando o cabelo da mulher.

Os anos decorridos não haviam sido fáceis para ambos. Tika e Caramon trabalhavam arduamente para manter a estalagem e, embora adorassem o que faziam, não fora fácil. Enquanto a maior parte dos hóspedes cochilava, Tika mantinha-se acordada vigiando a confecção do desjejum. Durante o dia inteiro havia quartos para arrumar, comida para preparar, hóspedes que deviam ser acolhidos com um alegre sorriso, roupa para lavar. Quando caía a noite e os hóspedes iam se deitar, Tika varria o assoalho, limpava as mesas e planejava o que fazer no dia seguinte.

Caramon ainda possuía a força de três homens, ainda era grande como três homens, embora a corpulência tivesse mudado de periferia devido, afirmava ele, à sua obrigação de provar toda a comida. O cabelo tornara-se um pouco grisalho nas têmporas e na fronte se sulcavam o que ele designava por “linhas de reflexão”. Era jovial, afável, e aceitava as mercês e as agruras da vida. Sentia orgulho dos filhos, adorava as filhas e amava profundamente a esposa. O seu único desgosto, a única mágoa, era a perda do irmão gêmeo devido à perversidade e à ambição. Mas nunca permitira que essa pequena nuvem lhe ensombrasse a vida.