Steel sabia a que noite se referia o dragão e manteve-se obstinadamente em silêncio. No assento atrás dele — o cavaleiro trocara a sela para um homem só por uma adaptada a duas pessoas — Palin remexia-se e murmurava palavras incoerentes. Nem sequer o pavor do dragão o fazia resistir à exaustão. O mago mergulhara num sono que, pelo visto, pouco conforto lhe transmitia, pois o jovem estremecia, soltava gritos estridentes e roucos e começara a divagar.
— Cale-o — advertiu o dragão. — Pode não vislumbrar sinais de vida no solo ali em baixo, mas ela existe. Sobrevoamos as montanhas de Khalkist e é lá que vivem os duendes dos esgotos. As sentinelas encontram-se alertas e são astuciosas. A nossa silhueta escura perfila-se contra o céu iluminado pelas estrelas. Facilmente nos identificariam e passariam a palavra.
— Valeria muito, a eles ou a outra pessoa qualquer — observou Steel. Mas, como sabia que o melhor seria não enfurecer o dragão, virou-se na sela e pousou com firmeza a mão no braço do mago.
Ao sentir o contato, o mago aquietou-se. Dando um profundo suspiro, acomodou-se melhor. A sela para duas pessoas fora concebida para transportar dois cavaleiros, um empunhando aço, o outro encantamentos mágicos ou eclesiásticos, que eram úteis para neutralizar os ataques mágicos do inimigo. A sela era feita de madeira leve com revestimento de couro e encontrava-se equipada com alforjes e arreios destinados não só às armas como também aos componentes e artefatos para os encantamentos. Os cavaleiros ficavam separados por uma prateleira revestida com couro almofadado. No interior havia uma gaveta que servia para guardar rolos de pergaminho, mantimentos e outras parafernálias. Palin seguia com a cabeça apoiada nessa gaveta e o rosto, manchado de sangue, repousava sobre o braço. A outra mão, mesmo durante o sono, segurava o Bastão de Magius que — em conformidade com as suas instruções — fora preso com firmeza à sela.
— Está revivendo a batalha — observou Montante Luzente. Vendo que o mago sossegava, o cavaleiro retirou a mão e voltou o rosto para o vento turbulento.
Resfolegando, e dando um safanão com a cabeça coberta de escamas azuis, o dragão deu a entender o que pensava do comentário.
— Foi um tumulto. Não é por lhe chama de “batalha” que o dignifica.
— Os Solâmnicos combateram bravamente — replicou Steel. — Defenderam o terreno deles. Não fugiram nem se desonraram rendendo-se.
Fulgor sacudiu a crina, mas não fez comentários, e Montante Luzente teve a sensatez de não repisar o assunto. Há 25 anos, o dragão lutara nas Guerra dos Dragões. Nessa época, os soldados da Rainha das Trevas nunca perdiam uma oportunidade para ridicularizar ou desacreditar o inimigo. Se algum Senhor dos Dragões se atrevesse a louvar os Cavaleiros da Solamnia, como Steel acabara de fazer, teria sido rebaixado de posto e possivelmente perdia a vida. Fulgor, tal como a maior parte dos dragões leais a Takhisis, sentia dificuldade em se adaptar à nova corrente de pensamento.
Um soldado devia respeitar o inimigo — nisso concordava com Lorde Ariakan. Mas elogiá-los era, na sua perspectiva, ir um pouco longe demais.
Steel inclinou-se para frente, a fim de dar uma palmadinha no pescoço do dragão e deste modo transmitir-lhe que respeitava a opinião dele e não faria mais comentários.
Fulgor, que gostava bastante do dono — na realidade, amava-o loucamente —, mostrou o seu apreço mudando de assunto. Embora, como poderão constatar pelo tema que escolheu, os dragões azuis não sejam famosos pelo seu tato.
— Presumo que não tenha notícia de Sara, não é mesmo? — perguntou Fulgor.
— Não — respondeu Steel em voz dura e fria, num esforço para refrear as emoções. — E sabe muito bem que não deve mencionar o nome dela.
— Estamos sozinhos. Quem vai nos ouvir? Talvez venhamos a ter alguma informação durante a nossa visita a Solace.
— Não quero ouvir falar dela — replicou Steel, mantendo a dureza do discurso.
— Acho que tem razão. Se por acaso viéssemos a descobrir onde se esconde, seríamos obrigados a capturá-la e levá-la de volta. Lorde Ariakan pode elogiar todos os inimigos da sua simpatia, mas não quer nada com os traidores.
— Ela não é traidora! — exclamou Steel com um ímpeto que fez derreter o gelo das suas emoções. — Poderia ter nos traído inúmeras vezes e no entanto manteve-se leal...
— AH — respondeu Fulgor.
— Criou-me quando a minha mãe me abandonou. Claro que me amava! O contrário é que não seria natural!
— E você a amava. Não pretendo ser depreciativa — acrescentou Fulgor, ao sentir que Steel se remexia na sela, pouco à vontade. — Eu amava a Sara, se é que se pode dizer que nós, os dragões, amamos os mortais. Tratava-nos como seres inteligentes. Consultava-nos, pedia-nos opinião, escutava os nossos conselhos. A maior parte do tempo. A única vez que pude ajudá-la, não veio falar comigo. — Fulgor deu um suspiro. — Que pena nunca chegar a compreender a nossa causa! Deviam conceder-lhe a Visão. Bem que o sugeri, mas Lorde Ariakan não me deu a mínima, é claro.
— Pelo que ouvi dizer, nem posso assegurar que a minha verdadeira mãe fosse capaz de entender a nossa causa — replicou Steel em tom cáustico.
— Sua Eminência Kitiara? — cacarejou Fulgor, divertida com a perspectiva. — Sim, era daquelas que traçava o seu próprio caminho, e Takhisis espezinha todos os que se interpõem a ela. No entanto, que lutadora! Destemida, ousada, proficiente. Encontrava-me entre os que lutaram ao seu lado na Torre do Sumo Sacerdócio.
— Uma batalha que não abonou muito a seu favor — comentou Steel em tom seco.
— Foi derrotada, é verdade, mas ergueu-se das cinzas para derrubar Lorde Ariakus e ascender à Coroa do Poder.
— Que culminou com a nossa ruína. “Virou-se o feitiço contra o feiticeiro.” Um credo de ressentimento e traição que significou destruição. Nunca mais. Somos aliados, irmãos na Visão e tudo sacrificaremos para mantê-la viva.
— Nunca revelou a tua comparticipação na Visão, Steel — observou Fulgor.
— Não me é permitido. Como não a compreendia inteiramente, relatei-o a Lorde Ariakan. Ele, que tampouco a compreendia, disse-me que melhor seria guardá-la para mim, não a debater com os outros.
— Não me considero os “outros”! — exclamou Fulgor, ofendida.
— Eu sei — disse Steel em tom mais ameno e dando palmadinhas no pescoço do dragão. — Mas o meu senhor proibiu que falássemos dela a quem quer que fosse. Vejo luzes. Devemos estar perto.
— As luzes que avista pertencem à cidade das Sanções. Apenas sobrevoamos o mar Novo e vamos chegar à Abanasínia, muito próximo da Consolação. — Fulgor perscrutou os céus e verificou o vento, que parecia esmorecer. — É quase de madrugada. Te deixarei, e ao mago, nos arredores da aldeia.
— E durante o dia, onde vai se esconder? É muito difícil passar despercebida.
— Me refugiarei em Xak Tsaroth. Depois de todos estes anos, a cidade continua abandonada. As pessoas acreditam que está assombrada. É verdade que sim, mas pelos duendes dos esgotos. Antes de adormecer, comerei alguns. Regresso ao cair da noite ou espero que me chame?
— Espere que eu te chame. Ainda não estou bem certo quanto aos meus planos.
Ambos falavam em tom despreendido, não mencionando o fato de se encontrarem infiltrados nas linhas inimigas, a sua vida correr perigo a cada segundo e não poderem contar com nenhum apoio. Alguns cavaleiros da Ordem de Takhisis viviam no continente de Ansalon, a espionar, procurando infiltrar-se e recrutando adeptos para a causa. Mas mesmo que chegasse ao conhecimento de Montante Luzente a existência de tais cavaleiros, não poderia recorrer a eles, nada podia fazer susceptível de perturbar o véu sob o qual se ocultavam. De acordo com a Visão, uns e outros tinham incumbências específicas.