Só que ele não estava bem certo quanto à que seria a sua.
Fulgor deixou para trás a terra e sobrevoou o Mar Novo. A Lua Vermelha ainda não se pusera, mas a luz acinzentada da madrugada embaciava a refulgência de Lunitari. Esta mergulhou rapidamente no mar, como que grata por fechar o seu olho vermelho ao mundo.
— Sturm... — gemeu Palin durante o sono, evocando o nome do irmão morto.
Estranhamente, o nome surgira na festa de consagração da Visão. Sturm fora o nome do irmão do mago, mas esse irmão fora assim chamado em homenagem ao pai de Montante Luzente.
— Sturm... — repetiu Palin. Steel rodou na sela.
— Acorde! — exclamou, com voz exasperada. — Está quase em casa.
Steel e Palin desconheciam-no, mas o dragão deixara-os quase no mesmo local que, muitos anos atrás, constituíra o ponto de encontro entre dois amigos.
A época de antanho pouco diferia da época atual. A única diferença residia nas estações — outrora calhara no Outono e agora no Verão. Acontecera numa época de paz, tal como agora reinava a paz. E então, como agora, muitos afirmaram que a paz duraria para sempre.
Palin Majere tropeçou no mesmo seixo sobre o qual Flint Forjardente repousara outrora. Steel percorreu o caminho trilhado em tempos por Tanis Meio Elfo. Palin baixou os olhos em direção ao vale. Normalmente, as árvores, de grande porte, ocultavam todos os vestígios da aldeia que se abrigava nos ramos das árvores. Porém, a espessa folhagem verde exibia agora um tom acastanhado e poeirento. A maior parte das folhas morrera e tombara, tornando as casas visíveis, nuas, abandonadas e vulneráveis.
Embora fosse cedo e o povo de Consolação começasse a acordar para um novo dia, do vale não se elevava a fumaça das lareiras nem das forjas. Tornara-se perigoso atear qualquer tipo de fogo. Só semana na passada uma centelha atingira uma árvore ressequida, que explodira numa bola de fogo, destruindo várias casas. Felizmente não se registrara a perda de vidas. Os moradores tinham conseguido escapar a tempo. Mas, desde então, as pessoas não ousavam queimar o que quer que fosse.
A Estalagem da Última Casa era o maior edifício de Consolação e foi o primeiro a ser avistado pelos dois. Palin ficou a olhar para a casa que era a sua, ansiando precipitar-se para lá e, depois de um tempo, fugir. Steel retirara os corpos dos irmãos de Palin do dorso do dragão. Estes jaziam agora, envoltos em linho, num tosco trenó improvisado, que Steel construíra com ramos de árvores. Atava os últimos ramos, e quando terminasse iniciariam a descida até o vale.
— Já acabei — disse Steel, dando um safanão no trenó. Este bateu numa pedra e começou a deslizar pela estrada, levantando, à passagem, uma nuvem de poeira.
Palin desviou o olhar. Ouviu-o ranger, lembrou-se do fardo que o mesmo transportava e a dor lancinante obrigou-o a cerrar os punhos.
— Está em condições de andar? — inquiriu Steel, e embora a voz do cavaleiro fosse soturna e rude, nela se detectava uma entoação de respeito, não troçava da mágoa de Palin.
Palin sentiu-se grato por isso. Contudo, achou a pergunta humilhante. Sturm e Tanin haviam de querer que ele aparentasse força, e não fraqueza, diante do inimigo.
— Estou ótimo — mentiu. — O repouso ajudou-me, assim como o emplastro que me colocou na ferida. Vamos?
Levantou-se e, apoiando-se pesadamente no Bastão de Magius, começou a descer a colina. Steel o seguiu, puxando o trenó. Olhando para trás, Palin viu os corpos ressaltarem e ouviu o ranger das armaduras enquanto o trenó efetuava a descida pela estrada irregular e poeirenta aos solavancos. Tropeçou, perdendo o equilíbrio.
Estendendo a mão, Steel amparou-o.
— É melhor olhar para frente e não para trás — observou o cavaleiro. — O que está feito está feito, nada pode alterar.
— Fala como se eu tivesse derramado um pires de leite! — retorquiu Palin, exasperado. — Trata-se dos meus irmãos! Sabe que nunca mais lhes falarei, nem os ouvirei rir, nem... nem... — Viu-se forçado a parar, a engolir as lágrimas. — Acho que nunca perdeu ninguém que te fosse querido. Vocês não se ralam com nada... a não ser com a carnificina!
Steel não fez comentários, mas à menção da perda de alguém o seu rosto ensombrou-se. Prosseguiu a caminhada penosa, rebocando com facilidade o pesado trenó. Os seus olhos, ocultos sob as espessas sobrancelhas pretas, moviam-se constantemente, não à toa, pois iam registrando o que se passava ao redor, fixando-se sobretudo na vegetação rasteira e no emaranhado de matagal.
— Que se passa? — inquiriu Palin, olhando em volta.
— Este lugar seria ótimo para uma emboscada — observou Steel.
O rosto de Palin, contorcido pela dor, desanuviou-se um pouco.
— É verdade. Foi exatamente ali que o duende conhecido por Fewmaster Toede deteve Tanis Meio Elfo, Flint Forjardente e Tasslehoff Pés Ligeiros e lhes inquiriu sobre um bastão de cristal azul. Aquele instante mudou-lhes as vidas.
Fez uma pausa, recordando os momentos terríveis que haviam alterado a vida dele e posto termo à vida dos irmãos. Steel manteve-se calado, não lhe interrompendo os pensamentos, mas pôs-se a caminhar ao lado dele.
— Mestre Mago, acredita no destino? — inquiriu abruptamente Steel, fixando a estrada coberta de terra. — Esse momento, a emboscada, mudou a vida do meio elfo, foi o que afirmou. Daí se infere que a vida dele seria diferente se esse instante nunca se desse. Mas, e se tal instante estivesse predestinado a acontecer, se não houvesse forma de escapar? Quem sabe se, oculto na emboscada, esse momento, tão certo como os próprios duendes, o aguardava? E se... — Os olhos escuros de Steel pousaram em Palin. — E se os teus irmãos nasceram para morrer naquela praia?
A pergunta teve o impacto de um soco no estômago. Por um momento Palin sentiu-se incapaz de respirar. Parecia que o próprio mundo ia à pique, que todos os ensinamentos recebidos resvalavam dele. Será que por trás de um arbusto, um Destino inexorável qualquer se escondia e o aguardava? Seria ele um percevejo, enredado no emaranhado do tempo, a estrebuchar e a contorcer-se em débeis esforços para escapar?
— Não acredito nisso! — Inspirou fundo e sentiu-se melhor, com o espírito desanuviado. — Os deuses concederam-nos livre arbítrio! Os meus irmãos optaram por se tornar cavaleiros. Na verdade, por não serem solâmnicos e não possuírem antepassados na Cavalaria, tiveram de conquistar tudo a pulso...
— Sendo assim, optaram por morrer — respondeu Steel, com os olhos fixos nos corpos. — Podiam ter fugido, mas não o fizeram.
— Não o fizeram — repetiu Palin baixinho.
Aturdido com a pergunta do cavaleiro, interrogando-se sobre o que a mesma ocultaria, Palin examinou intensamente Steel. E, sob a máscara de ferro dura e fria, vislumbrou, por um instante, o rosto humano. Rosto que duvidava, procurava, sofria.
Pedia algo, mas o quê? Conforto? Compreensão? Esquecendo-se das suas agruras, Palin preparava-se para tocá-lo com a mão e oferecer-lhe os seus fracos préstimos. Foi nesse momento que Steel se virou e surpreendeu Palin a fitá-lo.
O seu rosto reassumiu a expressão férrea.
— Então fizeram boa escolha. Morreram com honra.
Palin sentiu-se de novo aguilhoado pela raiva e amargura.
— Escolheram mal! — exclamou. — Eu escolhi mal! O que tem isso de honroso? — acrescentou, apontando para os corpos que jaziam no rudimentar trenó. — Que honra existe em ter de contar à minha mãe... Ter de lhe contar...
Dando meia volta, Palin afastou-se do local onde Tanis ouvira pela primeira vez falar do bastão de cristal azul e prosseguiu a descida da estrada. Ouviu, atrás de si, a voz de Steel, sorumbática, pensativa.