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— Mesmo assim, constitui um lugar excelente para uma emboscada.

E depois, o ruído do trenó, sacolejando e deslizando pela poeira.

9

A advertência.

Os elfos pegam em armas.

Tika volta a brandir a caçarola.

Uma réstia de Sol matinal esgueirou-se pelos losangos de uma das vidraças miúdas das janelas da estalagem, acertando em cheio nos olhos de Tanis. Este acordou, pestanejou e deu-se conta de que cochilara num dos pequenos pavilhões de madeira, situados nos fundos da estalagem. Esfregando a cara e os olhos, levantou-se, algo furioso consigo mesmo. Fora sua intenção manter-se a noite inteira acordado, de vigília. E ali estava ele, a cambalear como um duende embriagado.

No outro extremo do quarto encontrava-se Pothios, o rei elfo exilado, sentado a uma mesa juncada de mapas, tendo junto do cotovelo um frasco de vinho elfo e um copo. Escrevia qualquer coisa. Tanis não tinha muita certeza de quê. Um relatório, uma carta para um aliado, talvez anotasse planos ou atualizasse o seu diário. Ocorreu a Tanis que a posição de Porthios era sensivelmente a mesma de quando sucumbira ao sono. A única diferença foi constatar que o frasco de vinho estava um pouco mais vazio.

Os dois eram irmãos, embora não consangüíneos. Tanis casara com Laurana, a irmã de Porthios. Todos haviam sido criados juntos, crescido juntos. Porthios, o mais velho, nascera para liderar o seu povo e levava muito a sério tal incumbência. Não aprovara o casamento da irmã com um meio elfo, que era como, invariavelmente, considerava Tanis.

A Porthios faltava o charme do pai, o falecido Orador do Sol. Por natureza, Porthios era austero, sério, rígido no que se referia a erros. Desprezava o recurso das mentiras diplomáticas. Era um homem orgulhoso, mas aos olhos dos que não o conheciam a sua reticência e acanhamento assumiam foros de arrogância. Porthios, em vez de se esforçar por combater este defeito, costumava isolar-se dos que o rodeavam, até mesmo dos que o amavam e admiravam. E merecia grande admiração, pois era um general experiente e um bravo guerreiro. Partira em auxílio aos Silvanesti, arriscara a vida a combater o terrível sonho de Lorac, que lhe dizimara a pátria. Fora a traição deles que o deixara amargurado. E Tanis achava que não podia, por isso, censurar o cunhado por pretender vingança.

A refrega cobrara dividendos. Porthios, que em tempos fora alto e bonito, com um porte régio, tornara-se algo corcovado, como que vergado sob o peso da raiva e da amargura que o oprimiam. O seu cabelo, agora longo e áspero, mostrava-se grisalho — algo quase inédito, mesmo entre os elfos mais idosos. Envergava uma armadura de couro, rígida e surrada. As suas belas vestes começavam a acusar desgaste, a esgarçar na bainha, a abrir nas costuras. O rosto, frio, implacável e amargo, lembrava uma máscara, que apenas ocasionalmente tombava, para revelar o homem que se ocultava por trás, o homem que chorava de dor pelo seu povo, mesmo quando planejava desencadear a guerra contra ele.

Tanis olhou de relance para Caramon que, bocejando, se arrastou pesadamente para o catre oposto ao do amigo, a fim de dar repouso ao corpanzil.

— Adormeci — disse Tanis, coçando a barba. Caramon esboçou uma careta risonha.

— Olha quem fala! — respondeu. — O teu ressonar era capaz de derrubar uma árvore do vale!

— Porque não me acordou? Eu devia ter ficado de vigia!

— Para quê? — replicou Caramon dando outro bocejo e alisando o cabelo. — Não nos encontramos numa torre cercada por 47 legiões de duendes maléficos. Cavalgou o dia inteiro. Precisava descansar.

— A questão não é essa — respondeu Tanis. — Parece mal.

Mirou de relance o cunhado. E embora o rei elfo não estivesse olhando para ele, Tanis, vendo o maxilar cerrado e a postura rígida de Porthios, percebeu o que este pensava de si: Fracote! Meio-humano desgraçado!

Caramon, que seguira o olhar de Tanis, observou com um encolher de ombros:

— Eu e você sabemos que ele pensaria da mesma forma caso se mantivesse acordado a vida inteira. Anda. Vamos nos lavar.

O grandalhão encaminhou-o pelas escadas até o térreo. O calor matinal já se fazia sentir. Pareceu a Tanis que o próprio ar podia incendiar-se a qualquer instante. Sob a estalagem, havia uma barrica para água que, a princípio, devia estar cheia. Caramon espreitou lá para dentro e suspirou. A barrica encontrava-se cheia pela metade.

— Que aconteceu ao poço? — perguntou Tanis.

— Secou. No final da Primavera, os poços de quase todo mundo secou. As pessoas têm retirado água do lago Cristalmir. Trata-se de uma longa jornada. Esta barrica encontrava-se cheia a noite passada. Algumas pessoas já começaram a montar guarda na água delas.

Caramon foi buscar uma concha, inclinou-se para a barrica e encheu-a de água, que estendeu a Tanis.

Tanis examinou as pegadas enlameadas que rodeavam a barrica. A lama ainda se encontrava úmida.

— Mas você não — disse. Sorrindo, bebeu a água salobra. — Você efetua essa viagem todos os dias, até o lago Cristalmir e volta, acartando água para a estalagem. E vê sempre a barrica meio-cheia, porque os teus vizinhos andam lhe roubando água.

Caramon corou e espalhou água na cara.

— Não andam roubando — retorquiu. — Fui eu quem lhes disse para retirarem quando precisassem. Mas alguns deles sentem vergonha. É quase como mendigar, e em Consolação ninguém precisava de esmolar. Nem sequer depois da guerra, quando os tempos eram difíceis. Tampouco havia quem precisasse roubar para sobreviver.

Soltando um suspiro, Caramon resfolegou, soprou e limpou o rosto na manga da camisa. Tanis lavou a cara, tomando o cuidado de poupar a preciosa água. Algumas das pegadas em volta da barrica eram pequenas, de criança.

Tanis voltou a pendurar a concha no gancho.

— O Porthios esteve acordado a noite inteira? — perguntou.

Ele e Caramon encontravam-se de novo no fundo das escadas, mas não subiram logo. Uma sala comum apinhada de elfos de rosto carrancudo e severo — metade dos quais sem falar à outra metade — não era propriamente o lugar mais agradável do mundo.

— Que eu visse, nem sequer pestanejou — observou Caramon levantando o rosto para a janela junto da qual se achava sentado o rei elfo. — Mas, não se esqueça que a mulher está quase para ter um bebê. Lembro-me que não dormi quando a Tika estava... na mesma situação.

— Isso consigo entender — replicou Tanis com voz soturna. — Qualquer marido entende. Mas o Porthios parece que se está se preparando mais para uma batalha do que para a paternidade. Acho que nem uma vez sequer perguntou por Alhana.

— Não falou muito — respondeu Caramon com lentidão. — Mas a Tika aparecia com freqüência para tranqüilizá-lo. Na verdade, ele nem precisava de perguntar. Estive a observá-lo e acho que faz uma idéia errada do Porthios. Penso que ama realmente a Alhana e que, neste exato momento, a esposa e a criança por nascer são para ele as coisas mais importantes do mundo.

— Quem me dera poder acreditar nisso! Pois eu acho que, para ter o seu reino de volta, era capaz de vender os dois. É que... Mas, valha-nos o Abismo, o quê...?

A ponte de cordame sob a qual se encontravam — eram pontes que serviam de “estradas” e ligavam as casas edificadas nas árvores de Consolação — oscilava e rangia. Um soldado elfo atravessou-a correndo. Pela expressão carrancuda, era portador de más notícias. Tanis e Caramon entreolharam-se e subiram os degraus a toda pressa. Quando chegaram à estalagem, o elfo já comunicava a ocorrência a Porthios.

— Que é? Que se passa? — inquiriu Caramon, chegando em último lugar, arquejante e afogueado com o esforço inusitado. — O que eles estão dizendo?

A conversa urgente decorria no idioma elfo dos Qualinesti. Tanis, que escutava, fez um gesto para mandar o grandalhão se calar. Virando-se para Caramon, arrastou-o para trás do bar.