O Juiz atual demonstrara ser bem mais forte e agressivo do que os antecessores. Afirmava ele que isso se devia às épocas adversas. Todas as decisões que tomara pautavam-se pela sabedoria, ou pelo menos assim achava grande parte dos Irdas. Os que discordavam, sentiam relutância em quebrar a placidez da vida dos Irdas, pelo que nada contrapunham.
— Seja como for, não regressarão no futuro imediato, Meritíssimo Juiz — disse a mulher que estivera na praia, de vigia. — Vimos o navio deles desaparecer no horizonte. E reparamos que desfraldaram a bandeira de Ariakan, filho do falecido Ariakus, o Dragão Supremo. Tal como o seu pai, Ariakan é seguidor de Takhisis, a Rainha das Trevas.
— Se não fosse seguidor de Takhisis, seria de Paladino ou de qualquer outro deus ou deusa. Vai dar no mesmo. — Cruzando os braços no peito, o Juiz abanou a cabeça e acrescentou: — Hão de voltar, repito. Pelo menos pela glória da Rainha deles.
— Meritíssimo Juiz, falaram de guerra, de invadir Ansalon — interveio o homem que estivera de vigia. — Decerto isso irá mantê-los ocupados por muitos anos.
— Ah, estão vendo? — exclamou o Juiz relanceando, triunfante, o olhar pela assistência. — Guerra. Outra vez a guerra. Sempre a guerra! O motivo que nos levou a abandonar Ansalon. A minha esperança era de, ao menos aqui, nos encontrarmos a salvo, incólumes. — Soltou um profundo suspiro. — Ao que parece, enganei-me.
— O que faremos?
Os Irdas que se mantinham à parte, afastados uns dos outros, entreolharam-se, com ar inquiridor.
— Poderíamos abandonar esta ilha e viajar até uma outra onde estivéssemos a salvo — sugeriu um.
— Abandonamos Ansalon e rumamos para esta ilha — interveio o Juiz. — Aqui não estamos seguros. Nem aqui nem em parte nenhuma.
— Se voltarem, lutaremos, os afugentaremos! — disse uma Irda, muito jovem, que há pouco atingira o Ano da Individualidade. — Sei que ao longo de toda a nossa história, nunca derramamos o sangue de outras raças. Que nos escondemos para evitar matanças. Mas assiste-nos o direito de nos defender. Todos, no mundo, têm esse direito.
O outro Irda, mais maduro, contemplava a jovem com o olhar repassado de elaborada paciência que todas as espécies adotam quando os mais jovens pronunciam afirmações que embaraçam os mais idosos.
Por isso revelaram grande estupefação quando o Juiz afirmou:
— Sim, Abril, tem razão. Cabe-nos o direito de nos defendermos. Cabe-nos o direito de usufruirmos a existência plácida pela qual optamos. E, eu vos digo, devemos defender tal direito!
A estupefação fez com que vários Irdas falassem em simultâneo.
— Não está sugerindo que combatamos os humanos, não é, Meritíssimo Juiz?
— Não — replicou este. — Não estou. Claro que não estou. Mas, tampouco sugiro que arrumemos os nossos pertences e abandonemos os nossos lares. É o que querem?
Alguém pediu a palavra. Era um homem conhecido por Protetor, que ocasionalmente discordava do Juiz e, algumas vezes, dera a conhecer o seu desacordo. Não era, portanto, um dos grandes favoritos do Juiz, que franzira o cenho quando o Protetor começara a falar.
— De todos os locais onde vivemos, este é o mais propício, o mais belo, o mais adequado para nós. Aqui permanecemos juntos, embora apartados. Aqui podemos ajudar-nos uns aos outros, quando necessário, e no entanto preservar a solidão. Vai ser penoso deixar esta ilha. Porém... agora nunca mais parecerá a mesma. Sou de opinião que devemos nos mudar.
Com um gesto, o Protetor indicou as casas bem delineadas e acolhedoras, circundadas por jardins, sebes e flores amorosamente tratados. O outro Irda entendeu o que queria dizer. As casas eram as mesmas, permaneciam intactas graças à magia que lhes emprestava a ilusão de casebres de lama. Os olhos não conseguiam detectar a diferença, mas esta podia ser sentida, ouvida, saboreada e cheirada. Os pássaros, normalmente tão tagarelas e inebriados nos seus gorjeios, permaneciam em silêncio, temerosos. Os animais selvagens, que vagueavam em liberdade entre os Irdas, tinham se refugiado nos covis ou se abrigado no topo das árvores. No ar pairava o cheiro espesso de aço e sangue.
A inocência e a paz foram destruídas. As feridas iriam sarar e as cicatrizes desaparecer, mas permaneceriam as reminiscências. E eis que o Juiz sugeria agora que defendessem aquela pátria! Só o pensamento apavorava. A idéia de mudança ia adquirindo contornos, ganhando adeptos.
O Juiz percebeu que, para contrariar a tendência, teria que jogar com novos trunfos.
— Não estou sugerindo que nos lancemos à guerra — disse, em tom agora gentil, apaziguador. — A violência não está na nossa índole. Há longo tempo que analiso o problema. Prevejo a iminência da catástrofe. Acabo de regressar de uma viagem ao continente de Ansalon. Permitam-me que vos conte o que descobri.
Os outros Irdas olharam, com espanto, para o Juiz. Tão distanciados se encontravam uns dos outros que ninguém se apercebera que o chefe deles se ausentara, e muito menos que correra riscos passeando entre os forasteiros.
No rosto do Juiz, pairava a solenidade e a mágoa.
— A nossa embarcação, que a magia abençoou, levou-me até à cidade humana de Palanthas. Percorri as ruas e escutei as falas das pessoas. Viajei, pois, até o baluarte dos Reis Solâmnicos, e daí até aos povos mareantes de Ergoth. Franqueei os portões de Thorbardin, o domínio dos Duendes. Passei por Qualinesti, a terra dos Elfos. Invisível como os ventos, esgueirei-me pelas amaldiçoadas orlas da região elfa de Silvanesti, percorri as Planícies do Pó, detive-me em Consolação, Kendermore e Flotsam. Por fim, cheguei ao mar Vermelho de Istar, e daí passei perto da Fortaleza da Tempestade, de onde vêm precisamente esses cavaleiros das trevas.
— Mais de 25 anos (de acordo com o calendário dos humanos) se passaram desde a Guerra dos Lanceiros. O povo de Ansalon aspirava à paz, anseio que se revelou em vão, nós sabíamos! Quando os deuses lutam entre si, as batalhas que desencadeiam desabam sobre os mortais. A rainha Takhisis, agora que conta com os cavaleiros das trevas na sua luta, encontra-se mais poderosa do que nunca.
— Ariakan, o suserano, filho de Sua Eminência Ariakus, teve a desfaçatez e a temeridade de apontar à Rainha das Trevas as suas fraquezas. “Vira-se o feitiço contra o feiticeiro.” A derrota da Guerra da Lança deveu-se à cupidez e ao egoísmo dos comandantes da Rainha das Trevas. Ariakan, prisioneiro dos Reis da Solamnia durante e após a guerra, percebeu que os Cavaleiros Solâmnicos haviam alcançado a vitória por estarem dispostos a fazer sacrifícios pela causa — sacrifícios que culminaram com a morte do cavaleiro Sturm Montante Luzente.
— Ariakan transpôs as suas idéias para a prática e criou agora um exército de homens e mulheres dedicados de corpo e alma à Rainha das Trevas e, fato mais importante, empenhados, em nome desta, na conquista do mundo. Desistirão de tudo — riquezas, poder, a própria vida — para alcançar a vitória. Uns e outros se encontram unidos por vínculos de honra e de sangue. Constituem um adversário indomável, em particular porque Ansalon se acha de novo dividido em detrimento próprio.
— Os Elfos guerreiam uns com os outros. Qualinesti tem um novo regente, um mancebo, filho de Tanis Meio-Elfo e da filha do anterior Orador do Sol. O jovem foi enganado, e depois se viu constrangido a aceitar o papel de Rei. Na realidade, não passa de um fantoche, cujos fios são puxados por alguns elfos isolacionistas da velha guarda, que odeiam todos os que não são feitos à sua imagem, o que inclui os primos Silvanesti.