De início, enquanto se afastava do local da reunião, Usha sentiu-se invadida pela cólera, pois o argumento que apresentara era bom, e fora rejeitado com excessiva facilidade. Mas zangar-se lhe exigia muita energia e concentração. Tinha outros assuntos em mente. Penetrou no bosque, mas não para apanhar ervas para o jantar.
Em vez disso, encaminhou-se para a praia. Ao chegar à orla, ficou algum tempo a olhar, fascinada, para as pegadas deixadas na areia pelos dois jovens cavaleiros. Ajoelhou-se e pousou a mão numa delas. Era muito maior do que a sua mãozinha... Os cavaleiros eram mais altos e robustos do que ela. Ao visualizá-los mentalmente, sentiu um formigamento confuso e agradável percorrer-lhe o corpo. Era a primeira vez que entrava em contado com outros humanos, humanos do sexo masculino.
Por certo eram feios, comparados com os Irdas, mas não tão feios assim...
Usha permaneceu longo, longo tempo na praia, imersa em divagações.
Quanto aos Irdas, chegaram a uma decisão, optaram por incumbir o Juiz do assunto da Pedra Preciosa Cinzenta. Ele saberia como gerir a situação. Fosse qual fosse a sua resolução, seria acatada. Terminada a polêmica, regressaram às suas residências, ansiosos por se verem a sós, por deixarem para trás tão desagradável questão.
O Juiz não voltou logo para casa. Reuniu três anciões dos Irdas, chamando-os à parte para um debate em particular.
— Não abordei este assunto diante dos outros — disse, falando baixinho —, pois sabia a dor que causaria à nossa gente. Mas, a fim de garantirmos a nossa segurança, impõe-se que tomemos mais uma decisão. Nós nos encontramos imunes às tentações geradas pela Pedra Preciosa Cinzenta. Porém, existe um ser vivo entre nós que não é. Todos sabem a quem me refiro.
A avaliar pelas expressões consternadas e abatidas, os outros sabiam.
— Penaliza-me ter que tomar tal decisão — prosseguiu o Juiz — mas temos que mandar essa pessoa embora. Todos ouviram e viram Usha. Dado o seu sangue humano, a Pedra Preciosa Cinzenta fará com que corra perigo.
— Não podemos assegurá-lo — interveio um deles, arriscando um fraco protesto.
— Conhecemos as histórias que por aí contam — replicou o Juiz, em tom cortante. — Investiguei-as e descobri que eram verdadeiras. A Pedra Preciosa Cinzenta corrompe todos os humanos que dela se aproximam, enchendo-os de anseios e desejos que não conseguem refrear. De acordo com um relato, os filhos do guerreiro e o herói Caramon Majere quase sucumbiram. O deus Reorx interveio, em pessoa, para salvá-los. A Pedra Preciosa Cinzenta pode já ter se apoderado de Usha, para tentar utilizá-la como pomo de discórdia entre nós. Portanto, para o bem da sua segurança e da nossa, Usha tem de ser mandada embora.
— Mas, a criamos desde bebê! — protestou outro ancião. — Esta é a única pátria que conhece!
— Usha já tem idade suficiente para começar vida própria entre os da sua espécie — replicou o Juiz, suavizando a dureza do seu discurso. — Já comentamos antes o fato dela se sentir cada vez mais insatisfeita e entediada na nossa companhia. A nossa vida de estudo e de contemplação não se harmoniza com a sua índole. Tal como todos os humanos, para crescer, necessita de mudança. Estamos a sufocá-la. Esta separação será tão benéfica para ela como para nós.
— Vai ser difícil não tê-la por perto. — Um dos Irdas limpou uma lágrima, e os Irdas não choram com facilidade. — Em especial para o Protetor. Ele adora a menina.
— Eu sei — retorquiu o Juiz em tom gentil. — Parece uma crueldade, mas quanto mais depressa agirmos melhor será para todos nós, incluindo o Protetor. Estamos de acordo?
A sabedoria do Juiz foi respeitada. Este foi comunicar a nova ao Protetor. Os outros Irdas apressaram-se a retirar-se para o isolamento das suas casas.
3
A partida.
O presente de despedida do Protetor.
— Partir? — Usha fitou, com olhos inexpressivos, o homem que sempre conhecera como Protetor. — Abandonar a ilha? Quando?
— Amanhã, filha — respondeu este. Já se encontrava na pequena casa que partilhavam e começara a reunir os pertences de Usha, colocando-os na cama, a fim de embalá-los. — Estão preparando um barco para ti. É uma marinheira experiente. A embarcação foi reforçada com magia. Não se virará, por mais encapeladas que as águas fiquem. Quando não soprar o vento, a embarcação não ficará à deriva, prosseguirá o seu curso, impelida pela corrente dos nossos pensamentos. Vão transportá-la em segurança através do oceano, até aportar na cidade humana de Palanthas, que se localiza quase a Sul de nós. Uma viagem de 12 horas, nada mais.
— Palanthas — repetiu Usha, sem realmente compreender, ou mesmo saber, o que dizia.
O Protetor aquiesceu com a cabeça.
— De todas as cidades de Ansalon — disse —, acho que irá considerar Palanthas a mais adequada. A população é densa e variada. Os Palanthianos revelam uma maior tolerância para com as outras culturas que não a deles. Por estranho que pareça, tal possivelmente se deve à presença da Torre da Feitiçaria Suprema e do seu suserano, Lorde Dalamar. Embora mago da Ordem dos Vestes Negras, mostra respeito para com...
Usha não ouviu mais. Conhecia o Prot, sabia que falava movido pelo desespero. Sendo um homem gentil, brando, isolado, silencioso, aquelas palavras superavam as que lhe dirigira ao longo de meses, e provavelmente dizia-as para reconfortar a ambos. Soube-o porque, ao pegar numa boneca com a qual Usha costumava brincar quando criança, ele de repente calou-se e estreitou-a contra o peito, segurando-a como fizera outrora.
Os olhos de Usha marejaram-se de lágrimas. A jovem virou-se precipitadamente, para que não a visse chorar.
— Vou, então, ser enviada para Palanthas, não é? Bom. Sabe que eu desejava há muito partir. A minha viagem está toda planejada. Pensava em ir para Kalaman, mas... — encolheu os ombros — Palanthas serve. Uma ou outra, tanto faz.
Não tinha a mínima intenção de ir para Kalaman. O nome da cidade fora o primeiro que lhe viera à cabeça. Mas procurou ser convincente ao dizer que planejava há anos tal viagem. Na verdade, sentia-se apavorada. Horrível, terrivelmente apavorada.
“Os Irdas sabiam onde eu me encontrava a noite passada”, pensou, sentindo o aguilhão da culpa. “Sabiam que estava na praia, sabiam que eu estava pensando, a sonhar!”
Em sonhos, invocara as imagens dos cavaleiros: os seus rostos jovens, o cabelo úmido de suor e as mãos ágeis. Em sonhos, encontraram-se, falaram com ela, transportando-a no seu navio com carranca de dragão. Juraram que a amavam. Que por ela renunciavam às batalhas e à espada. Sabia tratar-se de uma tolice. Como podia um homem amar alguém tão feio? Mas podia sonhar que era bonita, não podia? Ao relembrar agora os seus sonhos, Usha sentiu-se toda afogueada. Envergonhavam-na, envergonhava-se dos sentimentos que lhe despertaram no íntimo.
— Sim, ambos sabemos que chegou a hora de partir — disse o Protetor, algo constrangido. — Já falamos disso antes.
Em verdade, nos últimos três anos Usha falara em partir. Iria planejar a viagem, decidir o que havia de levar. Chegara mesmo a considerar a hipótese de se ausentar por um dia, à experiência. Um dia à experiência, um dia indeterminado: “Dia de S. João”, ou a “Época das Três Luas”. Os dias foram decorrendo num vaivém. Usha ficou sempre. Ou pelo mar estar muito encapelado, ou o tempo muito frio, ou pelo barco ser inadequado, ou os vaticínios desfavoráveis. Gentilmente, o seu Protetor concordara sempre com ela, como acedia a tudo o que ela dizia ou fazia, e nada mais era dito. Até à vez seguinte, em que Usha se punha a planejar a viagem.
— Tem razão. De qualquer forma, eu tencionava partir — disse, na esperança de que ele tomasse por excitação o nó que lhe embargava a voz. — Já tinha algumas coisas embaladas.