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Passou a mão pelos olhos e virou-se para o homem que a criara desde a infância.

— Que está fazendo, Prot? — inquiriu, tratando-o pelo nome que lhe dirigia quando criança. — Imagine-me em Palanthas, agarrada à minha boneca? Deixo-a aqui. Te fará companhia durante a minha ausência. Podem falar um com o outro até eu voltar.

— Filha, você não vai voltar — disse Prot, baixinho.

Sem a olhar, acariciou a boneca esfarrapada. Depois, a estendeu em silêncio.

Usha olhou-o fixamente. O tremor formou um nó e o nó marejou-lhe ainda mais os olhos de lágrimas. Com um gesto brusco, pegou na boneca e arremessou-a para o outro lado do quartinho.

— Estou sendo castigada! Castigada por dizer o que me vai à alma! Castigada por não recear aquele homem! O Juiz me odeia! Todos vocês me odeiam! Porque sou feia, estúpida e... humana! Muito bem! — Com as costas das mãos, Usha limpou as lágrimas, alisou o cabelo e, arquejante, inspirou fundo. — De qualquer modo, não tencionava voltar. Quem o desejaria? Quem quer viver num lugar monótono onde, meses a fio, ninguém fala com ninguém? Eu é que não! Parto esta noite! Já! As coisas que eram para embalar que vão para o diabo! Nunca mais quero nada de ti! Nunca, nunca mais!

Pôs-se a chorar — a chorar e ao mesmo tempo a observar o efeito das lágrimas. O Protetor olhava-a com ar desamparado, como sempre acontecia quando chorava. Ia ceder. Cedia sempre. Faria tudo para acalmá-la, para lhe mitigar a dor, acederia aos seus desejos.

Os Irdas não estão habituados a revelar as suas emoções, a menos que estas sejam extraordinariamente profundas. Por conseqüência, os Irdas sentem-se desconcertados com os acessos tempestuosos do temperamento humano. Não suportam ver ninguém num estado de profunda angústia emocional, que lhes parece constrangedor, indecoroso, pouco digno. Cedo Usha aprendera que, com lágrimas e acessos de cólera, obtinha tudo o que desejasse. Os seus soluços aumentaram de intensidade, sufocou, engasgou-se e, em segredo, exultou. Não a mandariam embora. Agora não.

“Partirei”, pensou, ressentida, “mas apenas quando eu for boa e estiver preparada.”

Começara a soluçar desalmadamente e considerava a hipótese de se acalmar e dar ao Prot uma oportunidade para, humildemente, lhe pedir desculpas por tê-la apoquentado, quando um ruído a deixou atônita.

Era a porta se fechando.

Usha engoliu em seco e, desajeitadamente, procurou um lenço para limpar os olhos. Enxugadas as lágrimas, olhou em redor, estupefata.

O Protetor fora-se embora. Desta vez não funcionara.

Sozinha, Usha sentou-se na casinha silenciosa que lhe pertencera desde que a haviam trazido bebê. Uma vez tentara assinalar o percurso e calcular os anos passados desde que Prot lhe revelara o dia em que nascera. Mas, por volta dos trinta, desistira de contar. Até então, fora como que um jogo mas, por um motivo qualquer, a partir dessa idade o jogo tornara-se penoso. Ninguém lhe revelara grande coisa a respeito dos pais ou o motivo da ausência destes. Os Irdas não gostavam de falar desses assuntos. Sempre que o abordava, notava que ficavam entristecidos.

Ninguém sabia dizer-lhe quem era ela... apenas o que não era. Não era uma Irda. De modo que, num acesso de ressentimento, deixara de assinalar os anos e, quando de novo adquiriram importância para ela, perdera-lhes a conta. Será que se tinham passado quatro ou cinco anos? Seis? Dez?

Não que fosse relevante. Nada interessava.

Usha percebeu então que, desta vez, as lágrimas não ajudavam.

No dia seguinte, por volta do zênite do Sol, mais uma vez os Irdas se reuniram — duas vezes em dois dias, algo quase sem precedentes na sua história — para apresentarem as despedidas à “filha humana”.

Agora, Usha escudava-se na raiva, na raiva e no ressentimento. As suas despedidas foram distantes e formais, como se as dedicasse a um primo desconhecido que por acaso a visitara.

— Não quero saber.

Foram estas as palavras que o Protetor lhe ouviu dizer, de si para si, em tom pouco amistoso. “Sinto-me satisfeita por partir! Vocês não me querem. Ninguém nunca me quis. Não quero saber de nenhum de vocês. Não quero saber se se preocuparam ou não comigo!”

Porém, os Irdas preocupavam-se. O Protetor desejava poder dizer-lhe, mas se possivelmente conseguisse proferir tais palavras, seria muito penoso. Os Irdas haviam-se afeiçoado bastante à criança descuidada, alegre, chilreante, que lhes viera perturbar a contemplação estudiosa e forçá-los a abrir os corações selados e aferrolhados. Se a tinham estragado com mimos — e o Protetor sabia quão verdade isso era —, fora sem intenção. Tornava-os felizes vê-la feliz e, portanto, fizeram tudo que estava ao seu alcance para que assim continuasse.

De uma forma vaga, o Irda começou a pensar que estariam, possivelmente, cometendo um erro. O mundo para o qual a enxotavam tão rudemente, não se ralava em absoluto com Usha. Que interessava ao mundo que Usha se sentisse feliz ou infeliz, estivesse viva ou morta? Ocorria-lhe agora — já era um pouco tarde — que talvez fosse bom Usha ter sido disciplinada e ensinada a lidar com essa indiferença.

No entanto, nunca lhe ocorrera verdadeiramente que se veria obrigado a soltar o passarinho indomável e chilreante. Agora que os momentos se escoavam e embora não se registrassem manifestações óbvias de emoção, os Irdas revelavam os seus sentimentos da única forma que sabiam — dando-lhe presentes.

Usha aceitou as ofertas, agradeceu com ar displicente e meteu-as num alforje de couro, sem lhes conceder um olhar sequer. Sempre que o ofertante tentava explicar-lhe a função da prenda, Usha desdenhava-o. Sentia-se magoada, profundamente magoada, e, por seu turno, desejava magoar os outros. Na realidade, o Protetor não podia censurá-la.

O Juiz pronunciou um discurso comovente, que Usha escutou guardando um silêncio gélido. Chegou o momento da partida. A maré estava à favor, o vento também. Os Irdas murmuraram as suas orações e votos de felicidade. Usha virou-lhes as costas e, com ar altaneiro, atravessou a floresta em direção à praia, estreitando as prendas contra o peito.

— Não quero saber! Não quero saber! — repetiu vezes sem conta, e o Protetor desejou que se tratasse de um mantra para lhe dar forças.

Foi o único a acompanhá-la até o barco. Usha obstinava-se em não lhe dirigir palavra, e começou a invadi-lo a sensação de que possivelmente se enganara a seu respeito. Quem sabe se ela não passava de uma daquelas criaturas humanas insensíveis, negligentes...

Tinham percorrido cerca de metade do trajeto que desembocava na praia, encontravam-se os dois sozinhos no matagal, quando Usha parou de repente.

— Prot! Por favor! — Pôs-lhe os braços em volta do pescoço e estreitou-o contra si, uma demonstração de afeto que há muito, desde a infância, não revelava. — Não me mande embora! Não me obrigue a partir! Prometo ser boazinha! Não quero causar mais problemas! Amo-te! Amo a todos!

— Eu sei, filha, eu sei — respondeu o Protetor, com os olhos úmidos, dando-lhe palmadinhas desajeitadas nas costas. Guardava as vívidas reminiscências de fazê-lo quando ela era bebê e a embalava nos braços, num esforço para lhe dar o amor que a mãe dela nunca lhe pudera dar.

Apaziguados os soluços de Usha, segurou-lhe no braço e, fitando-a nos olhos, disse-lhe:

— Filha, não devia contar-lhe isto. Mas não posso deixar que parta achando que não te amamos mais, que por qualquer motivo nos desiludiu. Tal seria impossível, Usha. A amamos do fundo do coração. Quero que acredite nisso... A verdade é que... nos preparamos para fazer magia... uma magia muito poderosa, num esforço para evitar que os cavaleiros do Mal voltem. Não me é permitido explicar-lhe, mas essa magia pode prejudicá-la, Usha, por não ser uma Irda. Pode fazê-la correr perigo de vida. A mandamos embora porque a tua segurança nos preocupa.