Uma mentira. Possivelmente inofensiva. Na verdade, Usha partia porque talvez fizesse a magia correr perigo. Usha, a criatura humana, constituía a única mácula na estrutura de encantamento cristalina e perfeita que os Irdas tencionavam utilizar para refrear o poder da Pedra Preciosa Cinzenta. O Protetor sabia ser este o verdadeiro motivo que levava o Juiz a decretar o afastamento da jovem.
Usha deu uma fungadela. O Protetor limpou-lhe o nariz e a face, como quando era garotinha.
— Essa... essa magia — disse Usha, engolindo em seco. — Vai protegê-los? Os manterá a salvo do Mal?
— Sim, filha. É o Juiz quem afirma, e não temos motivos para duvidar da sua sabedoria.
Outra mentira. O Protetor, naquele único dia, proferira mais mentiras do que em toda a vida, que abarcava vários séculos. Sentiu uma profunda estupefação por constatar que o fazia na perfeição.
Usha tentou esboçar um pálido sorriso.
— Prot, obrigada por ter sido honesto comigo — respondeu. — Lamento... lamento se fui tão grosseira com os outros. Quero que lhes comunique os meus sentimentos. Diga-lhes as saudades que sinto deles e que pensarei em vocês... todos vocês... todos os dias... — Vendo que os olhos se marejavam de novo, engoliu em seco e limpou-os.
— Direi, Usha. Agora venha. O Sol e a maré não esperam por ninguém, é o que dizem os Minotauros.
Dirigiram-se para a praia. Usha caminhava muito calada. Parecia aturdida, incrédula, entorpecida.
Chegaram à embarcação — um veleiro de dois mastros com o desenho e o feitio de um minotauro. Os Irdas o tinham arranjado há vários anos, para o utilizarem na recuperação da Pedra Preciosa Cinzenta. Cumprido o objetivo, e como deixara de lhes ter préstimo, os Irdas haviam permitido ao Protetor que ensinasse Usha a manobrá-lo.
Usha e o Protetor arrumaram cuidadosamente as duas trouxas — um alforje pequeno contendo artigos pessoais que ela podia carregar nas costas, e outra maior, com os presentes dados a Usha. Esta vestia roupas que os Irdas julgavam convenientes e adequadas a viagens efetuadas sob temperaturas elevadas: calças feitas de seda leve verde, folgadas e soltas, unidas em volta dos tornozelos e presas com uma faixa bordada, uma túnica de seda combinando, aberta no pescoço e atada em volta da cintura com um cinturão de ouro e um colete de veludo preto, bordado à mão com cores vivas. Um lenço de seda verde cobria-lhe a cabeça.
— Todos estes preparos... Parece até um kender! — disse o Protetor, tentando se fazer engraçado.
— Um kender! — repetiu Usha, com um riso forçado. — Contou-me histórias a respeito deles, Prot. Acha que encontrarei algum?
— Vai encontrar, sim! Mais fácil será encontrá-los do que se ver livre deles. — Lembranças antigas obrigaram o Protetor a sorrir. — Encontrará kenders de coração alegre e mãos ágeis, duendes sisudos e rígidos, gnomos astutos e habilidosos, cavaleiros audazes e belos, elfos de voz cristalina. Vai conhecer todos...
Enquanto falava, o Protetor viu o olhar de Usha desviar-se dele e perscrutar o mar. O seu rosto abandonara a expressão aturdida, estupidificada e deixava agora transparecer a ânsia de ver, ouvir, saborear e tocar a Vida. Nuvens brancas cresciam, espessas, no horizonte, em contornos cada vez mais altos. Usha não vislumbrava nuvens, mas cidades alvas reluzindo ao Sol. Pareceu-lhe que se o oceano fosse de lousa, ela teria atravessado nesse instante.
O Protetor soltou um suspiro. Finalmente, o lado humano apoderara-se da criança órfã. Viu a excitação bailar-lhe nos olhos, os lábios dela entreabriram-se. Num gesto de inconsciente avidez, a jovem inclinou-se para a frente, disposta, tal como todos os humanos, a mergulhar no futuro.
Muito melhor do que Usha, ele — por ser dos raros Irdas a percorrer o mundo — conhecia os perigos que a jovem, na sua inocência, iria enfrentar. Esteve prestes a adverti-la, as palavras queimaram-lhe os lábios. Falara-se dos kenders e dos Cavaleiros. Era sua obrigação referir-lhe os cruéis draconianos, os duendes maléficos, os humanos de coração e alma corruptos, os sacerdotes obscuros que cometiam atos ignóbeis em nome de Morgion ou de Chemosh, os feiticeiros Vestes Negras com anéis que esvaziavam a vida, os vadios, os ladrões, os intrujões, os sedutores.
Mas, calou-se, guardando para si as advertências. Sentiu-se sem coragem para lhe embotar o arroubo, lhe roubar o radioso esplendor. Logo aprenderia. Só esperava que os deuses velassem por ela, pois era sabido que protegiam as crianças adormecidas, os animais perdidos e os kenders. O Protetor ajudou Usha a saltar para o barco.
— A magia guiará a embarcação até Palanthas. Filha, só precisa manter o Sol orientado para a tua face esquerda. Não receie as tempestades, pois é impossível o barco virar. Se o vento parar, a nossa magia será a tua brisa marítima que impulsionará a embarcação. Deixe que as ondas te embalem até adormecer. Quando acordar, pela manhã, avistará os pináculos de Palanthas reluzindo ao Sol.
Juntos içaram a vela. Durante a operação, o Protetor mostrou-se distraído. Censurava-se, tentando chegar a uma decisão. Por fim, tomou-a.
Aprontada a embarcação para se fazer ao largo, o Protetor instalou Usha junto à popa e cuidadosamente dispôs em volta dela os seus pertences. Feito isto, sacou de um rolo de pergaminho atado com uma fita preta, que estendeu a Usha.
— Que é isso? — perguntou ela, curiosa. — Um mapa?
— Não, filha, não é um mapa mas sim uma carta.
— Para mim? Fala... — acrescentou, com a esperança a iluminar-lhe o rosto — Fala do meu pai? Da razão que o levou a me deixar? Prot, você me prometeu explicar um dia!
Apanhado de surpresa, o Protetor corou intensamente.
— Mmm... eu... não, não fala, minha filha. Você já conhece a história. Que mais há a acrescentar?
— Disse-me que me deixou depois da morte da minha mãe, mas nunca me explicou porquê. Foi porque não me amava, não foi? Porque eu causei a morte da minha mãe. Ele me odiava...
— Filha, onde foi buscar essa idéia? — O Protetor mostrava-se chocado. — O teu pai te amava muito. E você sabe o que aconteceu, eu te contei.
Usha deu um suspiro.
— Sim, Prot — respondeu. Todas as conversas trocadas a respeito dos progenitores dela acabavam sempre assim. Ele obstinava-se em ocultar-lhe a verdade. Muito bem, não interessava. Descobriria a verdade por si.
O Protetor deu uma pancadinha leve na carta, ansioso por mudar de assunto.
— A missiva não é para ti mas, quando deixar de avistar a nossa ilha, pode abri-la e lê-la. O destinatário irá possivelmente fazer perguntas às quais só você poderá responder.
Usha examinou a carta com uma expressão perplexa.
— Então, a quem se destina?
O Protetor guardou silêncio por um instante, debatendo-se com os seus sentimentos. Abanando a cabeça, como que para dissipar as dúvidas, respondeu:
— Existe um feiticeiro poderoso, chamado Dalamar, que vive em Palanthas. Depois de ler a missiva, entregue-a. É lícito que fique ao par dos nossos planos. No caso de... — Calou-se, mas Usha percebeu de imediato.
— No caso de algo correr mal! Oh, Prot! — exclamou, estreitando-se contra ele, agora que se aproximava o momento da partida. — Tenho medo!
Terá a vida inteira, filha. Essa é a maldição dos seres humanos. Inclinando-se, beijou-a na testa.
— Que as bênçãos da tua mãe... e do teu pai... te acompanhem.
Saiu do barco e empurrou-o para as ondas.
— Protetor! — gritou Usha, estendendo a mão, como que a querer agarrá-lo.
Mas as águas, a magia, ou ambas, rapidamente arrastaram a embarcação para longe, e o chapinhar das ondas na praia abafou-lhe as palavras.