Cemetery in Pernambuco
(
Toritama
)
Why this great wall?
Why shut off these graves
from the other, larger
charnel, the dead landscape?
In this region do the corpses
themselves breed death? Does death
no longer breed them, dry as rubble?
Do they contain some moisture?
Why this high defense,
almost too high for the birds,
and the gates with so much iron,
so much iron in the locks?
This must be the seedbed,
the well-defended acre,
where the ashes are preserved
until the time for sowing.
Encontro com um poeta
Em certo lugar da Mancha,
onde mais dura é Castela,
sob as espécies de um vento
soprando armado de areia,
vim surpreender a presença,
mais do que pensei, severa,
de certo Miguel Hernández,
hortelão de Orihuela.
A voz desse tal Miguel,
entre palavras e terra
indecisa, como em Fraga
as casas o estão da terra,
foi um dia arquitetura,
foi voz métrica de pedra,
tal como, cristalizada,
surge Madrid a quem chega.
Mas a voz que percebi
no vento da parameira
era de terra sofrida
e batida, terra de eira.
Não era a voz expurgada
de suas obras seletas:
era uma edição do vento,
que não vai às bibliotecas,
era uma edição incômoda,
a que se fecha a janela,
incômoda porque o vento
não censura mas libera.
A voz que então percebi
no vento da parameira
era aquela voz final
de Miguel, rouca de guerra
(talvez ainda mais aguda
no sotaque da poeira;
talvez mais dilacerada
quando o vento a interpreta).
Vi então que a terra batida
do fim da vida do poeta,
terra que de tão sofrida
acabou virando pedra,
se havia multiplicado
naquelas facas de areia
e que, se multiplicando,
multiplicara as arestas.
Naquela edição do vento
senti a voz mais direta:
igual que árvore amputada,
ganhara gumes de pedra.
Encounter with a Poet
In a certain place in La Mancha
where the Castilian plain is hardest,
in the midst of a stiff blowing
wind armed with sand,
I happened upon the presence,
severer than I had imagined,
of one Miguel Hernández,
a farmer of Orihuela.
The voice of this Miguel,
hanging between word and earth,
the same uncertain earth
houses in Fraga are made of,
was once an architecture,
a metric voice of stone,
crystallized the way Madrid
appears when you first arrive.
But the voice I discerned
in the highland wind
was of tortured, beaten earth,
the earth of a threshing floor —
not the expurgated voice
of the poet’s selected works
but an edition of the wind
not found in libraries.
It was a disturbing edition,
to which many shut the window
(disturbing because the wind
frees rather than censures).
The voice which I heard
in the wind of the highland
was Miguel’s final voice
gone hoarse from war
(perhaps even harsher
in the dialect of dust;
perhaps more mutilated
in the wind’s interpretation).
I saw that the beaten land
of the end of the poet’s life,
land turned to stone
from so much suffering,
had multiplied itself
in those knives of sand
and in that multiplication
had multiplied its edges.
In that edition of the wind
the voice directly touched me —
it had gained blades of stone,
like an amputated tree.
Cemitério pernambucano
(
São Lourenço da Mata
)
É cemitério marinho
mas marinho de outro mar.
Foi aberto para os mortos
que afoga o canavial.
As covas no chão parecem
as ondas de qualquer mar,
mesmo as de cana, lá fora,
lambendo os muros de cal.
Pois que os carneiros de terra
parecem ondas de mar,
não levam nomes: uma onda
onde se viu batizar?
Também marinho: porque
as caídas cruzes que há
são menos cruzes que mastros
quando a meio naufragar.
Cemetery in Pernambuco
(
São Lourenço da Mata
)
This is a marine cemetery,
but marine of a different sea.
It was opened for the dead
who drown in the canefield.
The mounds of dirt resemble
the waves of any sea,
even the waves of cane, outside,
lapping these whitewashed walls.
Since these graves of earth
look like waves of sea,
they have no names; where
was a wave ever christened?
A marine cemetery because
its fallen crosses serve
not as crosses but masts
— masts of ships that are sinking.
Alguns toureiros
Eu vi Manolo González
e Pepe Luís, de Sevilha:
precisão doce de flor,
graciosa, porém precisa.
Vi também Julio Aparicio,
de Madrid, como Parrita:
ciência fácil de flor,
espontânea, porém estrita.
Vi Miguel Báez, Litri,
dos confins da Andaluzia,
que cultiva uma outra flor,
angustiosa de explosiva.
E também Antonio Ordóñez,
que cultiva flor antiga:
perfume de renda velha,
de flor em livro dormida.
Mas eu vi Manuel Rodríguez,
Manolete, o mais deserto,
o toureiro mais agudo,
mais mineral e desperto,
o de nervos de madeira,
de punhos secos de fibra,
o de figura de lenha,
lenha seca de caatinga,
o que melhor calculava
o fluido aceiro da vida,
o que com mais precisão
roçava a morte em sua fímbria,
o que à tragédia deu número,
à vertigem, geometria,
decimais à emoção
e ao susto, peso e medida,
sim, eu vi Manuel Rodríguez,
Manolete, o mais asceta,
não só cultivar sua flor
mas demonstrar aos poetas:
como domar a explosão
com mão serena e contida,
sem deixar que se derrame
a flor que traz escondida,
e como, então, trabalhá-la
com mão certa, pouca e extrema:
sem perfumar sua flor,
sem poetizar seu poema.