Juliette Benzoni
Fiora e Carlos, o Temerário
Primeira parte
OS BRÉVAILLES
CAPÍTULO I
A TUMBA ABANDONADA.
Fiora olhou para o cadafalso.
Com o olhar duro e seco e as mãos apertadas com tanta força uma contra a outra que os nós dos dedos lhe ficaram brancos, observou em pormenor a velha construção de pedra e madeira. Despojado do irrisório hábito negro que o envolvia para as execuções importantes, mostrava a sua carcaça de traves e pranchas cobertas de sangue seco que nenhuma lavagem conseguiria apagar, manchadas e queimadas pelo contacto do ferro em brasa ou do azeite a ferver, testemunhando assim a crueldade humana...
Sob a plataforma, a jovem pôde mesmo ver as arcas onde o ”carniceiro” guardava os seus utensílios de trabalho e o grande caldeirão onde, por vezes, em água a ferver, se metiam os moedeiros falsos, enquanto no sobrado se erguia o patíbulo, a roda e, junto de uma grande cruz, sinal da última misericórdia, o cepo de madeira rugosa, polida, enegrecida, revelando vestígios de golpes de espada ou de machado. Era, na verdade, uma imagem perfeita do inferno, aquela que aquele cadafalso oferecia, do prebostado de Dijon e, no entanto, fora ali que, numa manhã de Inverno, tinham caído as cabeças de Marie e de Jean de Brévailles, os jovens pais de Fiora, executados pelos crimes de incesto e adultério cinco dias após o seu nascimento... No mês de Dezembro seguinte, o dramático epílogo desse amor condenado faria dezoito anos. Tal como Fiora...
O desgosto, o horror e a cólera inchavam-lhe o peito face àquela máquina de suplícios onde tinham morrido os seus pais, cuja imagem só lhe podia ser dada por um espelho. Gostaria de o poder queimar com um fogo purificador. Porém, o velho cadafalso exercia sobre ela uma atracção mórbida, uma espécie de fascínio do qual não conseguia desprender-se. O seu espírito recriou a cena atroz. Ouviu crescer em si o toque a finados e os murmúrios da multidão. O céu azulado daquele belo dia de Junho apagou-se diante de um outro carregado de neve, cinzento como o vestido de Marie e o gibão de Jean, cinzento como os seus olhos e apenas o frio sol desse dia maldito brilhava, então, nos cabelos louros da condenada... A um canto da praça estava também um jovem vindo de Florença, cujo coração se apaixonara por aquela bela jovem que ia morrer e que nunca mais se recompusera. Francesco Beltrami, naquele instante supremo, votara a sua vida àquela que ia morrer e que nunca o conhecera e à filha que ela acabava de dar ao mundo. A pequena abandonada fora salva por ele do assassinato, recolhida, adoptada e educada como se tivesse nascido nos degraus de um trono, não nos de um cadafalso...
Naquele mesmo canto da praça de Morimont havia mulas carregadas com ricos tecidos, criados que cuidavam delas e o seu chefe, Marino Betti, que, a despeito de um voto de silêncio jurado sobre um altar, tinha, naquele começo de Primavera de 1475, traído o seu juramento, matado o seu patrão que confiara nele e arrancado Fiora ao doce paraíso da sua juventude, forçando-a, proscrita e privada da sua fortuna, a fugir da cidade da sua infância. Marino Betti, massacrado por ordem de Lourenço de Médicis, pagara o justo preço pelo seu perjúrio e pelo seu crime, mas a sua cúmplice, aquela por quem ele se tinha condenado, Hieronyma Pazzi, continuava viva, escondida não se sabia onde...
Forçada ao exílio, Fiora tivera que deixar desaparecer essa mulher, mas sem perder a esperança de a encontrar um dia e de a fazer pagar pelos seus crimes.
Entretanto, naquela Borgonha onde acabava de chegar, tinha uma tarefa sagrada para cumprir: vingar-se daqueles que tinham conduzido os seus pais àquele cadafalso. E eles eram três: primeiro Regnault du Hamel, o marido de Marie, que, devido aos maus tratos, a forçara a fugir para junto do irmão que tanto amava e que perseguira depois o casal com um ódio impiedoso. Em seguida, Pierre de Brévailles, o pai, que por uma sórdida questão de dinheiro obrigara a sua filha a um casamento que a horrorizava e que, chegado o drama, nada fizera para tentar salvar os seus filhos. Por fim, o duque Carlos da Borgonha, do qual Jean de Brévailles fora escudeiro no tempo em que ele era apenas o conde de Charolais que, por orgulho ferido e porque o jovem abandonara o serviço sem autorização, não foi capaz da clemência própria de um príncipe, sobretudo para com um companheiro de armas...
Fiora condenara esses três homens à morte, a meias no que respeitava ao Temerário com o seu velho amigo Demétrios Lascaris, o mago-médico de Bizâncio que queria, por sua vez, vingar a morte do seu jovem irmão Teodósio, executado pelos Turcos por ter acreditado ingenuamente no juramento desse príncipe... E chegara a hora de meter mãos à obra.
Arrancando-se subitamente às suas amargas reflexões, a jovem girou nos calcanhares e virou-se para o trio silencioso formado por Demétrios, pelo seu servidor Esteban e por dame Léonarde Mercet, a velha solteirona que Francesco Beltrami levara daquela mesma cidade de Dijon para servir de segunda mãe ao bebé abandonado. Foi a ela que Fiora se dirigiu:
Onde é a casa do carrasco?
Porquê essa pergunta?
Não me dissestes que o meu pai, antes de deixar esta cidade, deu ouro a esse homem para que ele desse uma sepultura decente à minha mãe e... ao seu irmão?
Esse irmão era o vosso verdadeiro pai reprovou-a docemente Léonarde.
Nunca o considerarei como tal. Ele deu-me apenas a vida. O meu verdadeiro pai será sempre aquele que repousa sob as lajes da igreja de Or San Michele, em Florença. De qualquer maneira, quero ver essa tumba.
Isso talvez seja difícil, senão impossível. O executor da época, Arny Signart, era um homem de idade. Talvez já não seja deste mundo e, de qualquer maneira, já não deve exercer...
Muito bem, o seu sucessor dir-nos-á onde ele está. Vamos vê-lo!
Sem esperar qualquer resposta, a jovem dirigia-se para os cavalos que Esteban prendera ao anel de ferro de uma casa, mas Demétrios deteve-a:
Eu vou lá! O teu lugar não é num local desses. Esse homem, o algoz que maneja os instrumentos acrescentou ele apontando para o cadafalso e seus acessórios é mantido à parte por toda a gente. É uma espécie de leproso que todos evitam...
E quando vai ao mercado, porque também ele tem de viver desdenhou Léonarde vai munido de uma varinha, com a qual designa o que quer comprar.
E o dinheiro dele? Ninguém o quer? perguntou Fiora, sarcástica.
É obrigado a usar luvas. Mas muitos preferem dar-lhe os produtos a aceitar dinheiro ganho com sangue. Há muito tempo, o duque João de Borgonha, a quem chamavam o Sem Medo, provocou um escândalo em Paris, por ocasião dos tumultos de 1413, ao apertar a mão de Capeluche, o carrasco da cidade.
Nada disso me diz respeito cortou Fiora. Obrigado pela tua solicitude, Demétrios, mas esta visita faz parte da tarefa que me impus e devo cumpri-la, tal como cumprirei muitas outras coisas desagradáveis. Onde mora esse homem?
Como queirais! suspirou Léonarde, sabendo que era inútil insistir. Segui-me! Não é longe daqui. É inútil levar os cavalos...
Deixando as montadas à guarda de Esteban, Léonarde guiou a sua companheira e o médico grego até ao fundo da praça, onde corria um ribeiro, o Suzon e perto do qual se erguia o moinho das Carmelitas. Uma casa aparecia nas traseiras deste, apoiada na muralha e sem que mais nenhuma lhe fizesse frente ou estivesse a seu lado; uma casa sólida e solitária, cuja porta vermelha estava pintada de fresco. Um postigo gradeado permitia aos habitantes reconhecer o visitante antes de lhe abrirem a porta.
Ao apelo da aldraba apareceu um rosto barbudo por trás das barras delgadas:
Que quereis? perguntou uma voz seca.
Sois o carrasco da cidade? perguntou Fiora. Gostaria de vos falar.
Quem sois?
Uma viajante estrangeira. O meu nome não vos diria nada. Mas, pagar-vos-ei, se responderdes às minhas perguntas.