Uma baiúca? Parece-me, antes, uma bela casa, sólida, bem construída...
Sim, claro, mas mal habitada. Eu, que estou a falar convosco, não gosto nada de passar diante dela depois de cair a noite.
Quereis dizer que... é um lugar mau?
Na verdade, não, mas o proprietário é má pessoa. É rico, no entanto, e de boa posição, mas sovina como um judeu. E detesta as mulheres, para as quais tem sempre um olhar mau, ou até uma palavra malcriada. Não tem criadas, aliás, antes dois criados, dois pacóvios que rosnam como cãeS raivosos e que mordem quando é preciso. Infeliz do mendigo que ouse bater à sua porta: só levará pauladas...
Ele não é casado?
Messiredu Hamel? Casado? Por mais rico que seja nenhuma mulher, ou rapariga, por mais miserável que seja, o quer. É preciso dizer que já teve uma esposa em tempos, quando morava por aqui. Uma jovem menina, da qual se diz que era bela como os anjos e que foi tão maltratada que fugiu de casa dele para ir ter com o irmão. A infelicidade quis que esse irmão e ela se amassem mais do que deviam e tudo acabou mal. O marido encontrou-os e mandou-os executar pelo carrasco... vede lá se isso dá vontade a outros!... Olhai! Eis um dos criados que sai para ir às compras...
Um homem de forte corpulência, de rosto inexpressivo sob os cabelos cinzentos cortados em quadrado, vestido com uma libré cinzenta e negra suficientemente limpa e transportando uma grande canastra, saía da casa, da qual fechava cuidadosamente a porta antes de meter a chave no bolso.
Aquele é o Claude, o mais velho. O outro, o Mathieu, irmão dele, é um pouco mais novo. Nunca saem juntos. Quando há um que sai, podemos ter a certeza que o outro está em casa. É o patrão que quer assim...
Em todo o caso, se o patrão é sovina, o criado não tem ar de mal alimentado...
O patrão não é burro. Sabe muito bem que é preciso dar de comer aos molossos, se quer que eles nos devorem. Diz-se que os dois irmãos lhe são muito dedicados. Falam pouco... O que não impede que eu ache que se devem passar coisas bem pouco católicas naquela casa tão bem guardada!
Porquê?
Chrétiennotte pareceu hesitar e olhou para Fiora como se perguntasse a si própria até que ponto podia confiar na jovem. Depois, finalmente, decidiu-se:
Bem, conto-vos mais isto e depois vou à minha vida. Senão, a vossa dame Léonarde ralha-me. Foi há dois anos, mais ou menos, no tempo em que o meu defunto Janet ainda estava neste mundo. Uma noite em que ele regressava um pouco tarde do trabalho ele era pedreiro chegou a casa todo virado do avesso, porque, ao passar pela rua du Lacei ouvira alguém chorar e gemer e que esse alguém era uma mulher que tinha o ar de sofrer muito... Como o meu Janet era um homem corajoso, bateu à porta e perguntou se precisavam de ajuda, mas ninguém respondeu...
Talvez houvesse uma mulher lá dentro?
Isso saber-se-ia! Aliás, o meu pobre Janet não foi o único a ouvir sons do mesmo género, mas no bairro pensa-se que talvez fosse a alma da pobre mulher dele, que regressou para o atormentar: foi na praça de Morimont que ela morreu... e a praça de Morimont não fica longe.
Se compreendi bem concluiu Fiora esse... du Hamel... dá-se a tanto trabalho para guardar uma casa onde ninguém tem vontade de entrar?
É isso mesmo! disse Chrétiennotte com satisfação. A mim, sei muito bem quanto tinham de me pagar para que fosse lá. E, mesmo assim, não sei se iria!
Tendo dado assim a sua opinião categórica, a viúva de Janet Pegou na vassoura, nos esfregões e com uma espécie de reverência a Léonarde, que transpunha a porta no mesmo instante, desapareceu no corredor trauteando uma cantiga.
Mas a história que ela contara deixou Fiora pensativa. Que a casa tivesse má reputação e que passasse por estar assombrada, convinha-lhe o que até lhe dava uma ideia de como atacar Regnault du Hamel. Desde a sua chegada a Dijon, que recusava a proposição radical de Esteban:
Quereis a morte desse homem? perguntara-lhe o castelhano. É a coisa mais fácil deste mundo. Eu espero por ele uma noite à entrada da porta e estrangulo-o.
Era simples, de facto, demasiado simples até, mas, sobretudo, demasiado rápido. Ela não queria que o carrasco da sua mãe morresse subitamente de um golpe que ele não veria de onde tinha vindo e sem saber quem o ordenara. Fiora queria ser o instrumento da vingança; pretendia saborear a morte do seu inimigo. Como digna filha da subtil e cruel Florença, estava decidida a gastar o tempo e o ouro que fosse preciso para que essa morte atingisse a perfeição de uma obra de arte...
Naquela tarde pensou nela durante muito tempo, os olhos perdidos no azul-pálido do céu onde os bandos de aves se perseguiam e escutando os barulhos daquela cidade onde nascera, mas que, no entanto, não conhecia. Ao contrário de Florença, sempre muito animada ao pôr do Sol, Dijon parecia adormecer ao fim do dia nas suas casas de telhados amarelos, vermelhos ou negros, cujas sombras desenhavam tapeçarias por entre os verdes jardins... Em cada bairro, o burguês mais considerado ia ter com o presidente da câmara para lhe entregar as chaves da porta que estava à sua guarda. Esses homens, para quem esse cargo era vitalício, tinham a responsabilidade dessas portas, de cuja defesa eram responsáveis com a ajuda de uma parte das portagens e das mercadorias. Dirigiam-se sempre em cortejo à câmara municipal, conservando esse uso um pouco solene e fazendo dele ponto de honra, numa cidade que era abandonada com frequência pelos seus duques. E Fiora sabia que Pierre Morel tinha uma dessas chaves a seu cargo.
Quando o ouviu entrar e depois de os sacristãos de Saint-Jean terem tocado o ”crève-feux” (últimas Ave-Marias), após o qual as ruas ficavam desertas salvo para os amantes da aventura, Fiora desceu à sala onde Léonarde acabava de arrumar as coisas após o jantar, no qual a jovem não quisera participar. Demétrios e Esteban, sentados a uma janela, aproveitavam os últimos instantes de luz para disputar uma partida de xadrez e todos ergueram os olhos, surpreendidos por constatarem que Fiora trazia o fato de rapaz com que abandonara Florença e segurava na mão um capuz de homem, destinado a esconder os cabelos.
- Santo Deus! - exclamou Léonarde. - Onde ides a esta hora, meu cordeirinho?
- Não muito longe. Quero ir ver de perto a casa de du Hamel quando escurecer. Se Esteban não se importar de me acompanhar...
- Naturalmente - disse o castelhano, que se levantou de imediato. - Mas, para fazer o quê? O dono ainda não regressou...
- É por isso que quero lá ir. Quando ele vier talvez não seja possível...
- Que tens tu na cabeça? - perguntou Demétrios, que pegara no rei de marfim e o examinava, como se se tratasse de um objecto raro.
- Dir-te-ei mais tarde. Por agora., quero ver o jardim e, se possível, entrar nele.
Demétrios pousou a peça de xadrez e franziu o sobrolho:
- Isso é uma loucura! Que ganhas tu com isso?
Sem responder, Fiora foi até um armário onde havia um cesto de cerejas, tirou um punhado e começou a comê-las, ao mesmo tempo que olhava para o céu que escurecia lentamente.
- Nesse caso, também vou - suspirou Demétrios.
- Prefiro que fiques aqui com Léonarde. Eu não me demoro muito e, além disso, repara-se menos em duas pessoas do que em três...
O grego não insistiu. Sabia que era inútil discutir com a jovem quando ela empregava um determinado tom. Para atenuar esse tom peremptório, a jovem acrescentou gentilmente:
- Não te preocupes, saberás tudo. Explicar-te-ei quando regressar.
Quando a noite ficou completa, Fiora e Esteban abandonaram a residência evitando fazer qualquer ruído e foram até à rua du Lacet, onde ficaram por momentos escondidos na sombra espessa fornecida pela sacada de uma casa, observando a de du Hamel. Esteban aconselhara aquela pausa:
- É melhor esperar. Os criados saem muitas vezes, por turnos, quando as ruas estão desertas.