O campo não seria melhor para vós? perguntou-lhe ela. Possuo lá várias casas e podia, facilmente, pôr uma delas à vossa disposição?...
Sois infinitamente boa respondeu Fiora e tenho vergonha de vos confessar que... o campo me aborrece. -Gosto de sentir, à minha volta, a animação de uma cidade e esta agrada-me...
A nossa cidade é bela, sem dúvida suspirou dame Symonne mas há muito tempo já que não tem qualquer animação. Pensai só que nunca vê os seus príncipes! O duque Carlos veio cá o ano passado, em Fevereiro e não via Dijon desde os doze anos. E foi em circunstâncias fúnebres...
Fúnebres? Morreu alguém da família?
Não. Veio receber os corpos do seu pai e da sua mãe, o duque Filipe e a duquesa Isabel, sepultados anteriormente em Bruges e em Gosnay, nos países de cá, para que repousem junto dos seus pais no convento de Champmol, que é a necrópole dos duques da Borgonha... O dia estava muito frio, sob um céu pesado de neve, mas eu fiquei muito feliz porque a minha querida duquesa, a quem eu era muito dedicada, veio para aqui, para o pé de mim, para esperar a ressurreição...
Por ela própria, mais ainda, talvez, do que pela sua silenciosa auditora, dame Symonne deixou sair da sua memória o longo e faustoso cortejo que entrou em Dijon naquele dia, conduzido pelo senhor de Ravenstein e pelo condestável de Saint-Pol, montados em cavalos cobertos de veludo negro, com a pomposa procissão das insígnias do duque defunto: o pendão armoriado, o cavalo de guerra conduzido pelos irmãos Toulongeon, a espada com punho resplandecente de pedrarias, depois o escudo, o elmo e o estandarte transportados pelos mais altos senhores, por fim a cota de malha com os símbolos do Tosão de Ouro, que o Grão-Mestre da Ordem transportava aberta nos braços e toda a nobreza dos diferentes países do grande duque do Ocidente vestida de luto seguindo o duque Carlos todo vestido de negro, que acolheu as duas urnas na presença dos arcebispos de Colónia, de Besançon e de Autun, dos embaixadores de Aragão, da Bretanha, de Veneza e de Roma. E depois todos os cavaleiros do Tosão de Ouro, levando ao pescoço os pesados colares da Ordem...
Naquele instante o coração de Fiora teve um sobressalto. Docemente, a jovem interrompeu a narradora:
No Inverno passado, em Florença, vimos chegar um desses cavaleiros, enviado como embaixador a monsenhor Lourenço de Médicis. Chamava-se... conde de Selongey. Conhecei-lo, talvez?
A emoção que fizera vibrar a voz de dame Symonne deu lugar a um riso divertido:
Messire Philippe? Quem não o conhece na corte de Borgonha? Monsenhor Carlos, a quem ele é devotado de corpo e alma, gosta muito dele. E não apenas ele!
Que quereis dizer?
Que ele é muito apreciado pelos seus companheiros de combate, porque é de uma grande bravura, mas também por muitas damas e donzelas. Ele tem muito encanto e aposto que as damas florentinas lhe sorriram muito?...
Não tiveram tempo, porque ele só ficou alguns dias disse Fiora, furiosa por sentir que a sua voz tremia e que conseguia esconder a cólera com dificuldade. Ele tem, então, muitas amantes?
Dizem que sim, mas não vos poderei responder com certeza, porque vivo afastada de uma corte que nos despreza e nos reduz ao estatuto de cidade de província, nós, que somos, no entanto, a capital. Os boatos chegam aqui de muito longe e tudo aquilo que sei é que, onde está o duque Carlos, está também o senhor de Selongey. Ora, o duque está sempre em guerra, o que não deixa muito tempo para os amores. Mas, e vós, minha querida, como achastes esse embaixador?
Pareceu-me... sedutor, se bem que mal o tenha conhecido. Mas, deixemos esse assunto e, se não vos importais, falai-me do duque! Que espécie de homem é ele?
Fiora esperava uma explosão de entusiasmo, o que não aconteceu. Dame Symonne permaneceu silenciosa por um momento, contemplando os anéis de ouro, pérolas e ametistas que lhe ornavam os dedos:
Como descrever-vos, sem fugir muito à verdade, essa mesma verdade que muda segundo os olhares? O meu é, sem dúvida, o da ternura, porque o alimentei com o meu leite e é verdade que o amo infinitamente, mas confesso que agora me mete um certo medo por causa daquele orgulho desmedido, ao qual se junta uma estranha propensão para a melancolia. Senti-o quando o vi o ano passado e atribuo-o, penso, ao seu sangue português...
Português?
Sim. A sua mãe chegou-nos de Portugal. Ela era irmã do príncipe Henrique, o Navegador, que pretendia conquistar os mares e foi ela que lhe transmitiu os seus sonhos de glória e de infinito. Monsenhor Carlos só está feliz quando entra em acção, mas, no entanto, desde sempre que teme a morte e a brevidade da vida é-lhe insuportável. Porém, nunca recua perante o perigo e até gosta de o procurar. Quando era jovem e vivia em Gorcum, gostava de embarcar sozinho num barco à vela e afrontar, assim, uma tempestade. Aliás, a tempestade, para ele, assim como a guerra, é o seu elemento natural. Encontra nele ressonâncias, porque tem acessos terríveis de furor. Temo que aquele velho sonho que ele persegue de reconstituir o antigo reino borgonhês o leve longe de mais. Ele procura unir, pela conquista, os países de cá aos países de lá, onde nos encontramos e talvez fosse melhor, sem dúvida, que ele sonhasse em proteger o que possui. O Rei de França não é um inimigo qualquer e ele espreita o nosso duque como a aranha espreita a sua presa no fundo da teia...
Como é ele fisicamente?
Eis uma pergunta bem feminina! disse dame Symonne rindo. Sabei, portanto, bela curiosa, que é um belo homem, mais baixo do que o seu pai mas de bela estatura e bem proporcionado... e muito vigoroso, o que o torna resistente à fadiga e às privações. Tem um rosto grande e corado, queixo poderoso, olhos escuros e dominadores. Os cabelos são negros e espessos. Raramente sorri, muito menos do que antigamente e é pena, porque isso dar-lhe-ia um grande encanto...
Diz-se que o pai dele gostava muito de mulheres. Ele assemelha-se, nesse aspecto?
De maneira nenhuma, porque está muito apegado à sua mãe e passa a vida, aliás, a dizer: ”Nós, os Portugueses...”, o que enlouquecia o duque Filipe, no seu tempo. Esse teve inúmeras amantes e a sua mulher sofreu muito para que o filho não fosse apanhado pelo deboche e pelo horror. Carlos amou profundamente Isabel de Borgonha, sua defunta esposa, que lhe deu a princesa Marie e creio que está muito ligado a Marguerite de Iorque, a duquesa actual, mas o seu coração ficou por aí e não se deixa levar pelos sentidos. Desconfia das mulheres, prefere de longe os companheiros de armas com a melhor das intenções, porque é casto. Como prefere a guerra às festas, ele, o príncipe mais faustoso da Europa, detesta os grandes banquetes e os bailes, de que o seu pai tanto gostava...
Ele não gosta, então, de se distrair?
Gosta, mas à sua maneira. Gosta de ler e, sobretudo, adora a música e passa horas a escutar os cantores da sua capela, dirigidos pelo mestre Antoine Busnois. Segue-os por toda a parte e chega a cantar com eles... É um príncipe estranho, não é verdade, aquele que vos descrevi?
Isso deve-se, creio, ao facto de que os príncipes não são como as outras pessoas. O duque é amado pelo seu povo?
Não tenho a certeza. Temem-no e, aliás, ele disse um dia aos Flamengos: ”Prefiro o vosso ódio ao vosso desprezo.” Mas desdenha tudo o que é burguês ou popular. Além disso, pode ser de uma crueldade impiedosa. As populações de Dinant e de Liège, cujas cidades arrasou, sabem-no, pelo menos aqueles que ainda estão vivos para se lembrarem...
No seu torreão, Jacquemart e a sua mulher deram quatro toques e dame Symonne levantou-se de imediato.
Ides-vos já embora? exclamou Fiora.
Sim, é tarde e tenho que fazer... Então, dizei-me, preferis ficar aqui a contemplar as águas do Suzon e aquela casa de persianas corridas?
Ela é um pouco melancólica, sem dúvida...