Dizei antes que é sinistra. E antigamente era tão encantadora e alegre! O jardim, no Verão, parecia um ramo de flores. A dona era aia da duquesa Marguerite da Baviera, avó do nosso duque e adorava todas aquelas plantas. Cresciam ao longo dos muros todos...
Dizem que o dono está ausente?
Tanto faz, quer esteja ausente, ou não. Se a minha tagarelice não vos fatiga, falar-vos-ei dele na minha próxima visita. Mas é má-rés...
Sempre a falar, dame Symonne aproximara-se da janela para deitar uma olhadela maquinal à casa em questão e, subitamente, o seu olhar animou-se:
Ides poder julgar por vós mesma, minha querida, porque aí está ele, que regressa.
Fiora saltou das suas almofadas com uma vivacidade que teria surpreendido, sem dúvida, a sua visitante, se o olhar desta não estivesse retido noutro lugar. Um homem, descia penosamente de uma mula em frente da porta da casa de onde acabava de surgir um dos criados.
Esforçando-se por ficar ao abrigo do lancil da janela, Fiora devorou com os olhos o recém-chegado com um ódio cuja violência a surpreendeu. Era um velho magro, que parecia curvado pelo peso do rico manto orlado de pele que usava apesar do calor. Por entre os cabelos grisalhos e baços que pendiam do espesso capuz de veludo, a jovem viu um longo rosto cor de marfim velho, um nariz pontiagudo e uma barba mal semeada, mas não lhe conseguiu ver os olhos sob o emaranhado saliente das espessas sobrancelhas...
Meu Deus, como ele é feio! disse ela, sincera.
E a alma não é mais bela, podeis acreditar!
E... ele vive sozinho naquela casa?
Com dois criados, dois irmãos, que mais parecem dois soldados alemães do que dois honestos criados.
Nenhuma mulher? No entanto, disseram-me que, uma noite, ouviram lá queixumes e gemidos...
Dame Symonne desatou a rir:
Isso é típico de Chrétiennotte! Ela está convencida que a casa du Hamel está assombrada e conta histórias a quem quer ouvi-la. Mas ela é como muitas raparigas do campo, que vêem coisas assombrosas por toda a parte...
No entanto, está persuadida de que há um fantasma naquela triste casa... O de...
Da infeliz que foi casada com aquela triste personagem?
perguntou dame Symonne, que deixara de rir. No fim de contas, talvez seja verdade, porque ela teria todas as razões para isso... Mas chega de conversa! O sacristão de Nossa Senhora já deve estar à minha espera para me falar da procissão de domingo. Desejo-vos uma boa tarde!
A dama eclipsou-se no meio de um grande frufru de sedas, deixando atrás de si um odor agradável a íris. A rua du Lacet estava vazia. Du Hamel, a sua mula e o seu criado tinham desaparecido. Fiora voltou a sentar-se nas suas almofadas e ficou um longo momento a reflectir, o queixo apoiado na mão. A hora de agir estava a chegar...
CAPÍTULO III
MARGUERITE
Acabava de soar a meia-noite e o coração de Fiora batia-lhe no peito com força, dando-lhe a impressão, por vezes, de sufocar. O calor fora muito durante todo o dia, sem que o crepúsculo anunciasse qualquer frescura. A noite estava pesada, tempestuosa, opaca, mas o ribombar de um trovão, ao longe, deixava prever chuva antes da madrugada. No entanto, Fiora esperava que a tempestade ainda demorasse: aquelas trevas vagamente ameaçadoras convinham-lhe para levar a cabo o que tinha decidido: chegara a hora de Regnault du Hamel pagar as suas perversidades...
De pé diante do espelho que dame Symonne mandara instalar no seu quarto, Fiora olhava para a sua imagem e não se reconhecia: o rosto artificialmente empalidecido com a ajuda de um creme e os cabelos louros que um barbeiro havia arranjado a Demétrios. A única coisa familiar era o pequeno chapéu de renda manchado de sangue que Léonarde conseguira salvar, com mais alguns objectos preciosos, do desastre do palácio Beltrami e que ela colocara, com a ajuda de um alfinete e com as mãos trémulas, na cabeça do ”seu cordeirinho”. O vestido cinzento de veludo mosqueado de dourado era pesado e difícil de usar com aquela temperatura, mas Fiora nem sequer transpirava. Essa manifestação humana era-lhe recusada, como se a alma de Marie de Brévailles tivesse entrado nela para assumir a vingança e a tivesse desencarnado. Como se fosse apenas uma aparência...
Atrás de si, Fiora ouviu Léonarde gemer. A velha solteirona estava aterrorizada pelo que via e mais ainda, talvez, pelo que se ia passar. Lutara com todas as suas forças para que a jovem se afastasse daquele perigoso projecto...
O ódio daquele homem não se extinguiu, meu cordeiro. E se ele vos matar, ou ferir?
Não se mata ou se fere um fantasma! E eu não estarei só. Demétrios vai comigo para tratar do criado de guarda...
Desejais assim tanto essa vingança? O homem está velho, não viverá muito mais tempo...
Demasiado tempo, de qualquer maneira, para a infeliz que ele mantém cativa. Vou acabar com uma vida e libertar outra...
Demétrios bateu à porta e entrou sem esperar uma resposta, mas estacou à entrada do quarto, olhando para a jovem que se virara para ele.
Como é que estou?
Impressionante... mesmo para mim! Não te esqueças do véu branco, mas deixa-me primeiro, acabar a nossa obra de arte!
Aproximando-se da jovem, o médico passou-lhe, em redor do pescoço, uma delgada fita vermelha e depois, retirando das mãos de Léonarde uma grande peça de tecido de musselina branca, atirou-a por cima da cabeça de Fiora, cuja personagem ficou enevoada sem deixar de ser reconhecível...
Tenho que ter liberdade de movimentos disse ela apontando para o punhal que levava preso à cintura, dissimulado sob as pregas do vestido...
O grito de uma ave nocturna, repetido três vezes, fez-se ouvir através da janela aberta:
É Esteban disse Demétrios está à nossa espera. Vamos, se continuas decidida!
Mais do que nunca!
A jovem envolveu-se num manto amplo e leve de seda negra destinado a torná-la invisível na noite e seguiu Demétrios. Bem oleada, a porta da residência abriu-se sem ruído e um instante mais tarde Fiora e Demétrios juntavam-se a Esteban.
Tens a chave? perguntou o grego.
Se não tivesse, não tinha assobiado, mas despachai-vos de qualquer maneira, porque o grande Claude, que bebeu, como uma esponja e dorme nos braços de uma rapariga da mme du Griffon, pode acordar a qualquer momento.
De qualquer modo disse Fiora se ele não encontrar a chave, não tem importância. A casa estará aberta...
Mas eu quero levar-lha, mesmo assim. Para que fique tudo em ordem e os homens do preboste não façam muitas perguntas quando encontrarem, amanhã, o cadáver.
Com dois saltos ligeiros, o castelhano chegou à porta, que se abriu sem o menor rangido. A obscuridade da casa engoliu os três amigos, que ficaram imóveis por um momento, para habituar os olhos às trevas envolventes. A ausência de janelas não tornava as coisas mais fáceis, mas aperceberam, finalmente, umas brasas avermelhadas, provavelmente numa chaminé e Esteban acendeu nelas a vela que trazia no bolso. Então, viram que estavam numa cozinha, ao fundo da qual se via a espiral de uma escadaria e a porta que dava para o jardim. Não havia ninguém à vista.
Fiora abandonou o seu manto negro e colocou o véu branco, de maneira a poder utilizar a mão direita. Com Esteban a caminhar à frente, dirigiram-se para a escadaria, que subiram o mais silenciosamente possível, e chegaram à grande sala, que estava perfeitamente vazia.
Devem estar lá em cima sussurrou Esteban. Efectivamente, quando a sua cabeça chegou ao nível do segundo andar, viu Mathieu, o segundo criado, que dormia profundamente, estendido em frente de uma porta em cima de um simples cobertor. Não era difícil adivinhar quem estava por trás da porta...
Espera aqui! sussurrou Demétrios ao ouvido de Fiora. Temos de nos desembaraçar dele...
Esteban, ágil e silencioso como um gato, já deslizava na direcção do dorminhoco que, das profundezas do seu sono, deve ter adivinhado a sua aproximação, porque se mexeu, grunhiu e mudou de posição. De joelhos, a dois passos dele, o castelhano retinha a respiração. Mas, com um suspiro de contentamento, Mathieu voltou a adormecer. Então, com um soco magistral, assestado com a rapidez e a força de um raio, Esteban Deixou-o inanimado. Em seguida, ajudado por Demétrios, puxou o cobertor para afastar o homem da porta. O caminho estava livre para Fiora, que viu um delgado raio de luz filtrar-se pelo local onde o criado tinha estado deitado.