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Deixando o seu servidor a atar e a amordaçar Mathieu, Demétríos regressou para o pé de Fiora e muito suavemente, abriu a porta cujo fecho se mexeu sem ruído. A zona luminosa alargou-se e a jovem pôde ver, enfim, o seu inimigo. Mais sentado do que deitado na cama, como todos os asmáticos, Regnault du Hamel lia à luz de uma vela pousada em cima da mesinha-de-cabeceira. Um gorro de noite estava-lhe enfiado até às orelhas e o seu busto desaparecia por baixo de uma camisola de lã cinzenta. Umas lunetas estavam-lhe penduradas no nariz. Parecia uma gárgula de catedral, tão feio, que Fiora teve vontade de saltar sobre ele e matá-lo de imediato. Mas conteve-se. O que ela queria ver, naquela figura, era o medo. Muito lentamente, a jovem avançou pelo quarto, deslizando mais do que caminhando e esperando que o soalho não rangesse, mas os seus pés encontraram um tapete e sentiu-se mais descansada. Du Hamel ainda não se apercebera da sua presença. Continuava a ler.

Então, a jovem fez ouvir um leve queixume e depois um outro... O velho ergueu os olhos e viu, a alguns passos do seu leito, uma sombra branca. O livro escapou-lhe das mãos e caiu por terra com um som surdo, mas a sombra continuava a aproximar-se... Agora, Regnault já podia distinguir um rosto, uns cabelos louros e um pescoço que parecia ter a marca sangrenta da espada do carrasco... Um pavor incrível invadiu-lhe o rosto. Tentou recuar no leito e quis gritar, mas, tal como nos pesadelos, nenhum som lhe saiu da boca de lábios violeta. Estendeu os dois braços para repelir a aparição e conseguiu sussurrar:

Não... não!

Vais morrer cochichou a voz baixa do fantasma. Vais morrer às minhas mãos...

Fiora já esboçava o gesto de tirar o punhal para desferir o golpe quando, subitamente, du Hamel levou as duas mãos à garganta. A sua boca, que buscava desesperadamente ar, abriu-se num estertor e os seus olhos pareceram sair das órbitas. Um espasmo sacudiu todo o seu corpo magro, que deslizou de lado e deixou de mexer-se. O rosto ficara violeta, como se uma mão invisível o tivesse estrangulado.

Estupefacta, Fiora ficou imóvel por um momento e depois, tirando o véu, inclinou-se sobre o homem inerte e chamou:

Demétrios! Vem ver!

O médico grego acorreu, segurou na mão abandonada sobre o lençol, encostou o ouvido ao local do coração e depois, vendo a boca aberta para um grito que nunca seria lançado e uns olhos que não veriam mais nada deste mundo, suspirou:

Está morto, Fiora... morto de pavor.

Isso é possível?

A prova! De qualquer maneira, o seu coração não devia ser muito sólido... Mas agora vamos e, sobretudo, não toquemos em nada. Dir-se-ia que o céu quis evitar que fizesses correr sangue. É preciso que encontrem o corpo tal qual está... Esteban vai libertar o criado e levar a chave ao outro.

O médico tinha-lhe segurado o braço para a levar, mas ela resistiu:

Estás a esquecer-te de uma coisa, Demétrios. Este homem está morto e eu sinto-me satisfeita, mas há uma pessoa que é preciso libertar, aquela mulher que eu ouvi chorar e não partirei sem ela...

Pegando na aba do vestido que lhe restringia os movimentos, Fiora lançou-se pelas escadas abaixo depois de ter tirado a vela das mãos do grego. A jovem foi abrir a porta que dava para o jardim na esperança de ver melhor, mas fechou-a de imediato, porque estava a levantar-se vento. Aliás, a tempestade aproximara-se e já rugia sobre a sua cabeça. Ela procurava uma porta que descesse à cave quando Esteban e Demétrios se lhe juntaram.

Não é uma porta que temos de procurar disse o castelhano é um alçapão... e vós tendes os pés em cima dele.

De facto, naquele local, as lajes davam lugar a umas pranchas espessas, mas havia ali tanta poeira que Fiora não vira a diferença. Os músculos sólidos de Esteban tiveram pouca dificuldade em erguer a tampa, que revelou uma escada de pedra mergulhando nas entranhas da casa. Uma lufada de ar infecto esbofeteou o rosto de Fiora quando ela pôs o pé no primeiro degrau. Demétrios puxou-a para trás:

Deixa-me passar primeiro. Eu alumio-te...

O médico começou a descer e depois estendeu a mão a Fiora:

Atenção! Os degraus são escorregadios. Isto está cheio de humidade...

Mas, pelo menos, não sufocamos declarou Esteban, que os seguia. Está muito menos calor aqui do que no resto da casa.

No fundo das escadas encontraram uma espécie de cave abobadada com duas portas feitas de velhas pranchas carcomidas.

É aquela que é preciso abrir indicou Fiora. O respiradouro do jardim deve ser desse lado. Mas não temos a chave...

Não é preciso chave para abrir isto! disse Esteban. E com um pontapé magistral despedaçou o batente, que só estava seguro por uma fechadura em mau estado. Um gemido piedoso fez eco com o tumulto que se desencadeara. A prisioneira devia temer novas sevícias. Mas Fiora já se precipitara pela abertura, baixando-se para não se magoar. O que viu graças à vela de Demétrios, que a seguira, arrancou-lhe um grito de horror: ao fundo de uma espécie de in pace, onde era impossível permanecer de pé, uma mulher, com um vestido em farrapos, estava estendida em cima de uma enxerga de palha meio apodrecida. Umas pulseiras de ferro e umas correntes do mesmo material prendiam-na a um grosso anel na parede. Fiora não lhe via o rosto, apenas uma longa e imensa cabeleira loura, tão suja como os farrapos da infeliz.

Ouvindo alguém penetrar no seu calabouço, a mulher virou-se penosamente, revelando um pequeno rosto magro, cheio de arranhões e vestígios de golpes, tal como os membros miúdos e, sem dúvida, o resto do corpo. Com as lágrimas nos olhos, Fiora caiu de joelhos junto dela sem receio de sujar o vestido, procurando já um meio de lhe tirar as correntes:

Não tenhais medo disse ela docemente. Nós vimos libertar-vos. O vosso carrasco está morto... Dizei-nos, apenas, quem sois.

A prisioneira abriu a boca, mas só conseguiu produzir sons inarticulados, a despeito do esforço patético que lhe fez chegar as lágrimas aos olhos pálidos, sem cor definida.

Meu Deus! suspirou Fiora. Ela será muda?

Talvez disse Demétrios mas, afasta-te e deixa-me ver. Não tenteis falar! acrescentou ele para a prisioneira. Nós vamos levar-vos daqui, tratar de vós... Nós somos amigos. É preciso partir estes ferros, ou abri-los acrescentou ele para Esteban, que partiu a correr. A chave deve estar em qualquer parte...

O castelhano regressou, felizmente, pouco depois, segurando na mão a chave que encontrara, juntamente com outras, à câmara da morte. As pulseiras de ferro caíram, revelando cruéis equimoses.

Vamos levá-la para nossa casa, não vamos? pediu Fiora, que num gesto pleno de doçura envolvera a jovem, que não devia ter mais de quinze ou dezasseis anos, com o grande véu branco que usara pouco antes.

Em resposta, Esteban curvou-se, ergueu-a nos braços e dirigiu-se para a porta, sem se preocupar em curvar-se para a transpor. Fiora e Demétrios seguiram-no e subiram para a cozinha, onde o grego deixou cair a tampa do alçapão. O barulho confundiu-se com um violento trovão. Entretanto, Demétrios abria a porta com precaução, para ver se a rua estava vazia. Os relâmpagos que se sucediam sem interrupção mostravam que não havia vivalma. Fiora pegou na manta negra que abandonara e cobriu-se com ela. Iam já a sair quando Demétrios se virou para Esteban, que não parecia muito incomodado com o seu fardo: