Dá-ma! disse ele. Vai antes ver se o criado continua a dormir...
Não tem importância, ele está amarrado e não viu nada...
Como queiras... Quanto ao irmão dele, no fim de contas, não vale a pena restituir-lhe a chave. Dá-ma. Vou atirá-la ao rio...
Quando chegaram à esquina da rua dês Forges, a chuva abateu-se sobre eles com tal violência que ficaram instantaneamente ensopados, se bem que não tivessem dado mais de três passos. As comportas do céu tinham-se aberto, precipitando trombas de água que em alguns segundos transformaram as ruas em outros tantos rios e deram ao tranquilo e modesto Suzon a importância de uma torrente...
Os trovões e os relâmpagos sucediam-se sem interrupção e a sua algazarra cobriu o barulho, se bem que ligeiro, da reentrada do grupo.
Fiora decretou logo que se desse o seu leito à desconhecida, mas como Demétrios decidiu delicadamente partilhar o seu com o seu ”secretário”, foi finalmente para o quarto de Esteban que levaram a evadida, para junto da qual Léonarde já se apressava. A governanta mandou Esteban aquecer água à cozinha, enquanto, ajudada por Fiora, desembaraçava a infeliz dos seus trapos infectos. O corpo que lhes apareceu estava magro e coberto de marcas penosas, mas mais cheio do que Fiora pensava, que, até ali, não atribuíra mais de quinze anos à prisioneira.
Ela deve ter uns vinte anos apreciou Léonarde, que acrescentou, examinando o ventre ligeiramente inchado: Pergunto a mim própria se ela não estará grávida...
Não me espantaria muito depois do que me apercebi através do respiradouro disse Fiora. Um daqueles brutos divertia-se com ela e, se calhar, os dois...
Demétrios, que fora ao seu quarto buscar aquilo de que poderia ter necessidade, entrou naquele instante e anulou o diagnóstico de Léonarde...
Não creio. Mas eu é que pergunto a mim próprio quem poderá ser ela e por que a manteriam sequestrada aqueles miseráveis?
A desconhecida continuava sem dizer nada. Mantinha os olhos fechados e deixava que cuidassem dela como se já não tivesse força para fazer o menor dos gestos. Entre as mãos de Demétrios, que a examinava, parecia tão mole como uma boneca de trapos.
Devem ter-lhe batido muito, porque algumas destas marcas são antigas e, sem dúvida, passou fome, mas parece estar de boa saúde...
Já te esqueceste que ela parece muda? disse Fiora. Talvez lhe tenham cortado a língua?
Demétrios assegurou-se de imediato que não era o caso e declarou que o terror e os maus tratos podiam privar qualquer pessoa da fala, às vezes durante algum tempo e outras para sempre.
Quando ela estiver em melhor estado faremos uma experiência acrescentou ele. Por agora, é demasiado cedo...
Léonarde e Fiora lavaram o melhor que puderam a evadida antes de lhe vestir uma das camisas de Fiora, puseram-lhe pomada nos punhos, que as pulseiras tinham posto em carne viva, e ligaram-nos com pano fino. Em seguida atacaram-lhe o rosto, que tinham deixado para o fim. Tiraram-lhe a porcaria e o sangue seco, mas não conseguiram ocultar as nódoas azuladas que denunciavam os golpes recebidos..
Que belos cabelos! suspirou Fiora, segurando a longa cabeleira loura. Que pena estarem tão sujos! Vai ser preciso lavá-los!
Podeis estar certa que nos encarregaremos disso quando ela estiver suficientemente forte para isso... Oh! reparai, meu cordeiro, ela está a abrir os olhos!
As duas mulheres e o grego inclinaram-se para o leito onde a desconhecida acabava, de facto, de erguer as pálpebras, revelando umas pupilas de um azul-pálido a atirar ligeiramente para o verde. A jovem olhou para os três rostos e esforçou-se por sorrir sem, realmente, o conseguir.
Estais em segurança, aqui disse docemente Fiora. Ninguém mais vos fará mal e nós velaremos por vós...
Vamos começar por vos dar qualquer coisa de comer disse Léonarde e um pouco de leite...
Com este tempo tempestuoso o vosso leite deve ter azedado disse Demétrios. Fazei-lhe antes um chá de tília com muito açúcar e mel, ao qual deveis acrescentar uma pitada disto acrescentou ele estendendo-lhe uma pequena caixa de madeira pintada.
Tendo ficado só com Fiora, Demétrios regressou para junto do leito e olhou para aquele rosto jovem e doloroso que sobressaía na brancura da almofada. Subitamente, o médico inclinou-se e pegou no candelabro que ardia em cima da mesinha-de-cabeceira para o erguer por cima do leito.
Sabias murmurou ele que esta infeliz se parece contigo?
Comigo?
Sim... mas mesmo muito, aliás. De facto, é sobretudo Parecida com aquele rapaz, aquele jovem monge fugido, que nós enviámos para a guerra.
Christophe? Achas que ela é da família?
Léonarde regressara com o chá e enquanto este arrefecia ° suficiente para que pudesse ser bebido, Fiora deu-lhe parte da ideia de Demétrios, acrescentando que não via muito bem quem poderia ser a jovem. Mas Léonarde, essa, via. Depois de ter olhado mais de perto para o rosto de olhos fechados, lembrou a Fiora o relato em forma de confissão que, numa noite de Primavera, Francesco Beltrami fizera à sua filha:
Lembrai-vos! Ele disse-nos que a tua mãe tinha dado uma filha a Regnault du Hamel. Juraria que é esta. Se for o caso, ela deve ter vinte anos, como eu pensava...
Filha dele? Ele teria tratado a filha desta maneira ignóbil? E isso durante estes anos todos? É impossíveclass="underline" já estaria morta!...
Não disse Demétrios nada disso é impossível. Já houve prisioneiros, mesmo mulheres, que se obstinaram em viver em condições terríveis. A resistência humana pode ser incrível, sobretudo quando se trata de seres jovens e, agora, tenho a certeza que tenho razão: esta jovem é tua irmã, Fiora!
Minha... irmã?
A palavra, e ainda mais a ideia, entraram lentamente no espírito da jovem, no entanto bem vivo. Nunca pensara muito naquela peripécia do relato do seu pai e nunca pensara, sobretudo como irmã, na criança que Marie de Brévailles tivera do seu casamento. Nem sequer fizera, perguntas acerca daquele assunto, porque não imaginava que um pai, fosse ele um du Hamel e extremamente abjecto, pudesse ser carrasco da própria filha. Segundo ela, a filha do conselheiro devia ter sido confiada, depois da fuga da mãe, a um convento qualquer, a menos que a sua avó a tivesse reclamado, o que teria sido normal. Mas, agora, descobria que a infame personagem transferira para a criança o ódio que votava a Marie. Fizera dela o bode expiatório, infligindo-lhe um longo martírio que se devia comprazer em observar. Matá-la teria sido demasiado rápido, menos agradável, sem dúvida, mas que tivesse levado a ignomínia a ponto de a entregar aos prazeres dos seus criados... ultrapassava qualquer entendimento e toda a tolerância! Tremendo de cólera, Fiora pensou que fora lamentável du Hamel ter morrido tão depressa. Uns poucos segundos de terror puro, ao passo que teria merecido uma agonia lenta, sujeito às torturas mais cruéis!
Lentamente, a jovem regressou para junto do leito onde Léonarde dava de beber àquela irmã, da qual ainda nem sequer sabia o nome e sentiu-se invadida por uma imensa piedade, pegou docemente numa das mãos magríssimas, que mais pareciam garras e conservou-a na sua. Léonarde lançou-lhe uma rápida olhadela:
Achais, não é verdade, que aquele miserável não pagou suficientemente caro? Neste mundo, sem dúvida. Enquanto eu continuo a agradecer a Deus por ter evitado que sujásseis as mãos naquele sangue podre! Mas, não creio que o inferno seja um lugar muito agradável e podeis estar certa que a esta hora messire du Hamel já transpôs a soleira a arder.
Espontaneamente, Fiora rodeou com os braços o pescoço da sua velha governanta e beijou-a:
Vós tendes sempre as palavras certas para me dizer, não é verdade, minha querida Léonarde? Lembrai-me mais vezes que vos recorde que vos amo muito!
Isso é muito agradável de ouvir. E já que achais que os meus discursos têm sempre um propósito, escutai isto: é terrivelmente tarde e vós caís de sono! Ide dormir! Amanhã também é dia e teremos tempo de pôr ordem nas nossas ideias. Em todo o caso, sei que as minhas têm muita necessidade!...