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No dia seguinte de manhã o bairro estava em revolução e a algazarra assaltava as nobres mansões e as oficinas dos armeiros da rua dês Forges. Tendo encontrado a porta da casa de du Hamel aberta de par em par, uma vizinha, levada por uma curiosidade antiga, tinha-se aventurado, não sem ter, apesar de tudo, chamado para o vazio. Saíra de lá pouco depois lançando gritos assustadores que tinham acordado em sobressalto todos aqueles que ainda dormiam e atraído para o local uma multidão excitada, na primeira fila da qual se podia ver Chrétiennotte, pronunciando grandes discursos com ar soberbo e contando a quem a quisesse ouvir a aventura nocturna do seu defunto Janet, enfeitada com algumas descobertas da sua lavra.

Daqui a nada está a meter-nos nas suas histórias! grunhiu Demétrios ao constatar que, pela terceira vez, a tagarela apontava para as suas janelas. E mandou Esteban em busca de Chrétiennotte, para tentar inculcar-lhe uma melhor compreensão dos seus deveres domésticos. Esta deixou-se arrastar sem resistência, mas não se ocupou, todavia, da lida da casa. Debruçada da janela de Fiora, limitou-se a mudar de posto de observação. De facto, não queria perder por nada a chegada do preboste e da sua gente, que vinha constatar os estragos. Ao vê-la, Léonarde encolheu os ombros, pegou num cesto e foi às compras depois de ter tomado a precaução de fechar à chave o quarto onde repousava a infeliz que Fiora tirara do inferno.

Naturalmente generosa, Léonarde não gostava muito daqueles regressos sucessivos, na vida de Fiora, a um passado que ela desejava vê-la esquecer. Christophe de Brévailles tomara, graças a Deus, o seu próprio caminho e, na noite anterior, Fiora evitara sujar as mãos de sangue para grande alívio da solteirona. Du Hamel morrera de medo, morto pela sua própria consciência e pronto, mas, agora, havia aquela rapariga, muda e talvez idiota, que era preciso esconder, o que não era fácil e representava um fardo bem pesado para uns ombros de apenas dezoito anos...

No regresso das compras, Léonarde parecia ainda mais inquieta do que quando partira. Só se falava da morte do conselheiro ducal e da do seu criado Mathieu, que tinham encontrado apunhalado a alguns passos do seu quarto. Quanto ao segundo criado, Claude, desaparecera e várias vozes já o acusavam de duplo crime, se bem que o corpo de du Hamel não tivesse quaisquer marcas de sevícias. Pelo contrário, os seus cofres e armários tinham sido escrupulosamente vasculhados e esvaziados...

O que se passara não era difícil de imaginar. Regressando tarde e sem dúvida aliviado por encontrar a porta aberta, Claude, temendo, talvez, ser acusado da morte do patrão, achara mais simples fugir com tudo o que pudesse levar, depois de ter assassinado o seu próprio irmão para evitar ter de partilhar com ele. Quanto à prisioneira, ninguém falava dela, já que a sua presença era ignorada por todos, mas não deixava de constituir um perigo permanente, pela tagarelice que o seu salvamento e alojamento em casa do médico estrangeiro poderia suscitar. As bisbilhotices, os mexericos... a grande especialidade de Chretien-notte Evidentemente, Esteban proibira expressamente a honrada mulher de entrar no seu quarto, pretextando um trabalho delicado que tinha começado, mas durante quanto tempo conseguiriam mantê-la à distância?

Assim, mal entrou em casa, Léonarde pousou o cesto na cozinha, foi tirar Chrétiennotte do seu observatório onde, aliás, não havia mais nada para ver e intimou-a a ir descascar os legumes para a sopa. Em seguida foi expor as suas angústias a Demétrios, que encontrou no seu quarto a escrever.

O grego escutou-a sem dizer nada segundo o seu hábito, mas, quando ela acabou, levantou-se e pôs-se a andar de um lado para o outro, de uma ponta do tapete à outra.

Que fazemos? perguntou Léonarde. Deus é testemunha de que tenho pena daquela pobre rapariga, mas não podemos escondê-la eternamente, ainda por cima porque não vamos ficar aqui muito mais tempo. Portanto?...

Honestamente, eu próprio não sei que fazer. A melhor solução seria confiar esta infeliz, uma vez curada, a um convento da vizinhança. Mas um convento exige um dote e isso representa uma grande despesa! Não nos podemos permitir isso. Acabar-se-nos-ia o ouro dado por Lourenço de Médicis e teríamos de pensar em nos juntarmos já ao Rei Luís. Por outro lado, se esta rapariga é filha do triste sire que morreu a noite passada, também deve ser herdeira dele?

E como reclamar a herança sem nos arriscarmos a ser acusados de assassínio?

Isso é rigorosamente possível, mas teríamos de ter a certeza de que ela é quem pensamos!

E como havemos de saber? Ela é muda.

Isso não é certo, porque ela emite sons. Em tempos, no Egipto, vi uma mulher que tinha perdido o uso da fala no seguimento de um grande susto. Um imã, com quem eu aprendia então, restituiu-lha. Se pensarmos no que ela suportou, pode ser o caso da nossa evadida. Desde que ela a possa suportar, tentarei uma experiência. Em todo o caso, dame Léonarde, farei tudo para que possamos partir daqui o mais cedo possível. Não é bom, para Fiora, mergulhar na atmosfera doentia destes dramas antigos...

No entanto, vós encorajai-la a prosseguir estas vinganças que lhe envenenam o coração?

A impunidade dos culpados ainda a envenenaria mais. Além disso, eu não tenho poder nenhum sobre a sua vontade, que é inflexível. Tenho a sensação de ver reviver nela as princesas da Grécia antiga, Antígona, Hermíone ou Medeia, que iam implacavelmente até ao fim dos seus desígnios, fosse qual fosse o preço a pagar...

Essa é a vossa opinião! Eu preferia rever nela a criança que era, a adolescente terna e alegre que corria no jardim de Fiesole..

Em todo o caso e mesmo que o drama não tivesse acontecido, essa criança de que falais não podia vingar. Chega sempre o momento em que a rapariga dá lugar à mulher. Fiora é uma mulher, agora, e uma mulher robusta, forjada no fogo da infelicidade: são as melhores... ou as piores! Mas é esse o seu segredo!

Tentai, ao menos, não a empurrar demasiado para essa segunda categoria!

Tendo dito o que pretendia, Léonarde foi ver se Chrétiennotte já se decidira a regressar ao trabalho. Demétrios não era o único a querer descobrir com certeza a identidade da prisioneira. Fiora, que se instituíra sua enfermeira, tentava, pelo menos, descobrir-lhe o nome e, dois dias após a sua chegada, vendo que a saúde voltava e que a sua protegida fazia progressos quase à vista desarmada, meteu-lhe nas mãos um papel e uma pena previamente mergulhada em tinta:

Como não me podeis dizer o vosso nome, propôs-lhe ela docemente escrevei-o.

Mas a jovem doente, subitamente muito corada, restituiu-lhe os objectos abanando a cabeça com um ar tão desolado que Fiora, comovida, passou-lhe um braço pelos ombros e beijou-a:

Não sabeis escrever? Não tem importância, aprendereis depressa. Mas vamos tentar, ao menos, saber o vosso nome de baptismo. Eu vou dizer uns nomes e vós parar-me-eis quando disser o vosso...

A desconhecida aprovou com um sorriso. O jogo devia diverti-la, mas Fiora rapidamente se apercebeu de que necessitava de ajuda, porque conhecia, sobretudo, nomes florentinos, que tinha de traduzir. Assim, achou mais fácil ir buscar Leonard” mais a par dos nomes usados na Borgonha. Isso não deve ser muito complicado disse esta. Nas famílias nobres, dá-se frequentemente às filhas o nome de duquesas, presentes ou passadas. Quando esta criança nasceu a duquesa chamava-se Isabel. Vós chamais-vos Isabel? Não. Fiora emitiu a hipótese de que talvez fosse Marie? Mas também não era Marie...

Continuemos com as princesas continuou Léonarde.

É muito simples: a mãe, a avó e a esposa do duque Carlos têm as três o mesmo nome: Marguerite...