Esteban, que se ausentara por um instante, regressou com um jarro e taças.
Depois do que acabamos de presenciar, penso que precisamos todos de um pouco de vinho. Vós estais tão extenuados como a vossa paciente...
Tendo-se deixado cair sobre um banco perto do leito, Demétrios parecia, na verdade, extremamente cansado e o seu rosto estava de uma palidez de cera. Aceitou de boa vontade a taça que lhe estendia o seu servo e bebeu-a lentamente, quase voluptuosamente. Léonarde apressou-se a mudar a camisa de Marguerite, completamente ensopada, porque a jovem só pedia para dormir. Fiora aproximou-se do seu velho amigo:
Realizaste um milagre, Demétrios... Onde arranjaste essa força espantosa que já te vi usar por duas vezes, no Mulherão e naquela miserável Hieronyma? Adormeceste-as para lhes dares ordens, mas, desta vez, conseguiste que Marguerite recuperasse a fala...
Ela tinha-a perdido no seguimento de um terrível choque. Era preciso, portanto, fazer reviver essa ocasião. Por força da minha vontade consegui, mas admito que estou esgotado...
Não foi perigoso... para ela?
O médico ergueu para Fiora os seus olhos escuros, marcados por grandes olheiras e suspirou:
Foi. Ela podia ter morrido.
E, mesmo assim, fizeste-o?
- Por que não? perguntou ele rudemente. Que tinha ela a perder? A sua vida já estava destruída. Não seria possível curá-la do que sofreu estes anos todos! Ela agora já pode falar e dentro de poucos dias andará pelo seu pé. Mas, para que futuro? Pensas encarregar-te dela?
Tu, que consegues erguer o véu que nos esconde o futuro, podes ajudar-me a responder a essa pergunta?
Não... não, não vi nada. Talvez não me interesse? Não te esqueças que temos uma tarefa importante a desempenhar Juntos...
Não me esqueço disse-lhe Fiora. Quanto a Marguerite, se ela for mesmo minha irmã...
Nada o prova, senão uma vaga semelhança... disse Demétrios, irritado.
Tão vaga... que, no entanto, atingiu-vos, a Léonarde e a ti! Se, portanto, ela é mesmo a filha da minha mãe se preferes essa fórmula creio que tenho uma ideia do que podemos fazer...
Não podeis falar mais baixo? repreendeu-os Léonarde, que estava em vias de fechar as cortinas em redor do leito de Marguerite. Aliás, é tempo de irmos dormir, também nós, não? Demétrios levantou-se, espreguiçou-se e depois, com um suspiro, dirigiu-se para a porta seguido de Fiora, silenciosa. Chegados ao corredor que dava serviço aos quartos, caminharam lentamente até ao da jovem.
Não me dizes em que pensas? perguntou o grego.
Penso respondeu Fiora que em breve deixaremos esta casa. Não temos mais nada que fazer aqui...
E para irmos para onde? Para junto do Rei Luís?
Ainda não, se não te importas! Eu não esqueço o que Christophe nos contou. Ainda há, não longe daqui, uma mulher que vive, também ela, um calvário por culpa do seu marido. Regnault du Hamel pagou a sua dívida, mas nós devemos, agora, examinar a de Pierre de Brévailles... E talvez, reclamando-lha, eu consiga alguma felicidade para dois seres que têm dela a maior das necessidades...
E, sem dar mais explicações, Fiora pousou um beijo furtivo na face barbuda de Demétrios, desaparecendo depois no seu quarto, cuja porta se fechou sem ruído.
Naquele fim de tarde, Fiora, com as luzes todas apagadas, permaneceu muito tempo à janela, contemplando aquela cidade onde morava há já algum tempo, mas que ia deixar e nunca talvez conheceria melhor. A noite estava quente, sem excesso, o céu puro, cheio de estrelas e nenhuma nuvem anunciadora de tempestade perturbava aquele azul imenso: umcéu quase florentino... Negligenciando a casa muda e doravante silenciosa onde a sua vingança se cumprira em tão estranhas circunstâncias, deixou o seu olhar seguir a delgada fita ondulada do Suzon, que mergulhava por baixo da rua Musette para reaparecer na abside da igreja dos Jacobinos. O pequeno rio entrava na cidade pelo norte e era para norte que se encontrava Selongey, a propriedade de Philippe...
A jovem concedeu a si própria o ócio de pensar nele coisa que recusara a maior parte das vezes até ao presente, para não se afastar dos seus projectos mas a morte de du Hamel trouxera de volta o tempo em que, enfim, poderia ir ter com ele para tentar conhecer a verdade do seu coração. Fora por amor por ela e para a voltar a ver que ele fora secretamente a Florença, percorrendo disfarçado as suas ruas? Ou desejaria ele, junto de Francesco Beltrami, uma nova ajuda financeira para as guerras do seu senhor? Léonarde inclinava-se para a primeira hipótese, que o coração de Fiora também partilhava, mas a jovem confessava a si própria que, de facto, não conhecia o seu marido e ignorava tudo dos seus pensamentos e reacções. Um rabo-de-saias? Fora o retrato precoce traçado por dame Symonne, um rabo-de-saias que não devia precisar de correr muito para conseguir o que queria. Se estava a esse ponto rodeado e servido de mulheres, que lugar poderia ela esperar ter num coração assim tão assediado?
No entanto, perante Deus e a lei florentina na falta da dos homens e perante o amor, ela era realmente sua mulher e o pesado anel de ouro com as armas dos Selongey continuava entre os seus seios, na ponta de uma corrente de ouro. Fiora puxou o delgado fio para segurar o anel na mão. Estava pesado, quente do seu próprio calor, quase vivo... Fiora beijou-o, como teria beijado a boca de Philippe...
Onde estaria ele àquela hora? Algures no Luxemburgo, onde o grosso do exército se reunia na intenção de ocupar a Lorena? Em Bruges, onde se dizia que o duque Carlos reunia os Estados da Flandres para conseguir uma ajuda de guerra em homens e dinheiro? Estivesse onde estivesse, não estava, não podia estar em Selongey, onde, entretanto, Fiora sabia bem, nenhuma força humana a impediria de ir depois de acabar com os Brévailles...
Ao evocá-los, o seu pensamento regressou muito naturalmente a Marguerite e interrogou-se: que sentia, ao certo, por aquela meia-irmã caída do céu, ou antes, subida dos Infernos? Piedade, certamente, simpatia e toda a compaixão do mundo, mas, para dizer a verdade, não ia além disso. A voz do sangue ainda não se manifestara, ao passo que defendera a causa de Christophe espontaneamente.
Honesta consigo própria, Fiora reprovou a si mesma aquela frouxidão, que advinha, talvez, do facto de que fora impossível, até ali, comunicar realmente com a prisioneira libertada. Seria por causa daquele longo nariz pontiagudo, única semelhança com um pai que não merecia esse título? De qualquer maneira, quer a amasse, quer não, tinha pouca importância: não estava destinada a viver com Marguerite e a isso, pelo menos, Fiora estava bem determinada.
Com a aproximação da madrugada chegou a frescura. Tirando a roupa, a jovem estendeu-se sobre o leito para se deixar banhar por ela. Sentia a cabeça um pouco pesada, por ter, sem dúvida, respirado durante muito tempo o odor delicioso de uma tília que desabrochava num jardim vizinho. Descobria que aquela terra da Borgonha podia ser enebriante e que devia ser agradável viver nela, na condição de ter um par...
Por um instante, Fiora acariciou a ideia de se ir instalar em Selongey para ali esperar pacientemente o regresso de Philippe. A expressão do seu rosto quando a visse responderia, sem dúvida, a todas as suas perguntas. Mas, como subsistir até lá? Como consegui-lo, desprovida como uma mulher pobre qualquer, quando Philippe a conhecera tão rica? Demétrios não era o único a sentir-se atormentado com os dias que se iriam seguir. O ouro do Magnífico desaparecia a olhos vistos. Em breve impor-se-ia uma visita à rua dês Lombards, em Paris, à casa que Agnolo Nardi geria para o seu irmão-de-leite e onde, se Lourenço de Médicis não enganara Fiora, haveria fundos depositados em seu nome. Além disso, havia o juramento que a ligava a Demétrios, aquele juramento que ambos tinham sacralizado ao misturarem os sangues. E também não tinha razões para o transgredir, porque tinha ciúmes e odiava o Temerário quase tanto como o antigo médico de Bizâncio. Só a sua morte poderia libertar Philippe do sortilégio que o mantinha cativo, regressando assim, talvez, para junto de Fiora... se não se deixasse matar entretanto para maior glória do seu príncipe! Mas a jovem afastou aquela ideia funesta. Se Philippe já não respirasse algures sob o céu, um pressentimento tê-la-ia advertido. Teria sentido que uma parte de si própria teria deixado de viver...