Aqui, pagam antes para que eu não as faça.
O postigo fechou-se, mas a porta abriu-se. Um homem vestido de couro e que devia ter uma força pouco comum, apareceu. Devia ter uns quarenta anos, mas do seu rosto invadido por bigodes e uma barba trigueira só se via um nariz curto e uns olhos escuros profundamente encovados sob umas espessas sobrancelhas que se juntavam a meio. Segurava um livro numa mão.
Sem convidar os visitantes a entrarem para além do corredor para onde abria a porta, o carrasco cruzou os braços:
Escutemos as vossas perguntas enquanto vemos o vosso dinheiro.
Queria falar-vos do vosso antecessor, mestre...
Arny Signart soprou Léonarde.
Mestre Signart não foi o meu antecessor. Esse chamava-se Jean Larmite e antes desse era Étienne Poisson. E eu chamo-me Jehan du Poix. Há dez anos que Signart depôs a espada da justiça. Depois de trinta e cinco anos de serviço!
Morreu?
Ainda não, que eu saiba, mas está muito velho...
Sabeis dizer-me onde posso encontrá-lo? inquiriu Fiora levando a mão à bolsa presa por uma corrente à sua cintura.
Os olhos do homem seguiram o seu gesto com interesse:
Ele amealhou uns dinheiros que lhe permitiram comprar uma casita fora das muralhas, perto do priorado de Larrey. Dizem que se dá com os monges, que seriam os seus herdeiros... Se quereis vê-lo, é aí que o encontrareis... a menos que tenha morrido esta noite.
Deus queira que não! Obrigada por terdes respondido... A jovem estendeu três moedas de prata e ele avançou a mão para as receber sem afastar os olhos daquela jovem vestida de tecido cinzento fino, cujo rosto se escondia por trás de um véu que lhe cobria a cabeça. Era bela e, pelo porte, poderia supor-se que era uma dama nobre. Ele esperava que ela procurasse com os olhos um móvel qualquer para nele depositar o dinheiro, mas, sem hesitar, ela colocou-o na palma aberta da mão dele.
Não receais tocar a mão de um carrasco?
Porquê? Vós fazeis à luz do dia e debaixo de ordens o que outros fazem em segredo e a coberto da noite. Muitos de nós somos executores e não sabemos... Adeus, Jehan du Poix. Deus vos guarde!
O carrasco abriu-lhe a porta e, desta vez, inclinou-se quando a jovem a transpôs:
Se Ele é capaz de ouvir a oração de um miserável, é a vós que Ele guardará, nobre dama...
Em silêncio e sem prestar atenção a uma comadre que os viu passar, os três viajantes foram ter com os seus cavalos. Léonarde, que entrara em casa do executor com uma certa repugnância, apressara-se a dizer uma oração assim que saíra. Estava a terminá-la quando Fiora, com um pé no estribo, lhe perguntou: Vós sabeis, imagino, onde é esse priorado?
Mais ou menos a meia légua da porta de Ouche. Quereis lá ir agora?
Claro. O dia ainda não acabou. Isso contraria-vos?
Não, meu cordeirinho. Aliás, sou a única a poder mostrar-vos o caminho. De qualquer maneira, temos de apressar-nos, se queremos regressar antes do fecho das portas.
Já no exterior da cidade transpuseram o Ouche, um belo rio sombreado por amieiros e salgueiros. Na margem, lavadeiras batiam a roupa com grandes golpes de pás sem pararem, por um só instante, de rir e conversar, porque o tempo estava bom, doce e incitava aos gracejos. Ao longo do outeiro, no topo do qual se perfilavam os edifícios e a torre de um velho convento, algumas jeiras de vinha aqueciam-se ao sol...
Quem diria suspirou Demétrios que este país está em guerra? Tudo aqui respira paz e prosperidade...
Há meses, com efeito, que o duque Carlos de Borgonha, sempre na perseguição do sonho que o atormentava de reconstruir o antigo reino da Lotaríngia, anexando, por meio de novas terras, os seus domínios flamengos ao seu ducado propriamente dito e ao Franco Condado, cercava, perto de Colónia, a forte cidade de Neuss, sem conseguir o seu objectivo. E isso independentemente do facto de ter marcado encontro, nesse mesmo Verão de 1475, com o Rei de Inglaterra, Eduardo IV, para o ajudar a conquistar a França, essa França cujo rei, Luís, décimo primeiro do nome, odiava e com a qual a trégua, estabelecida há três anos, acabava de terminar sem esperança de prorrogação. O Temerário merecia bem o seu cognome...
A guerra está longe disse Léonarde e o duque só pode tirar das suas províncias o que lhe concedem, em homens e dinheiro, os Estados da Borgonha e os Estados da Flandres... E esta terra precisa de braços...
Mas, diz-se que o duque começa a ter falta de ouro
continuou o grego com uma alegria secreta. E era o príncipe mais rico da cristandade... Se anda à procura de empréstimos...
Bruscamente, calou-se, consciente do que ia dizer. Recordar as necessidades de dinheiro fresco do Temerário no momento em que Fiora se obrigava àquela penosa peregrinação só podia ser doloroso para a jovem. Era trazer à superfície a recordação pungente do casamento concluído em três dias, no Inverno precedente, entre a herdeira do rico Francesco Beltrami e o conde Philippe de Selongey, embaixador enviado pelo Temerário a Lourenço de Médicis para tentar negociar um empréstimo. Empréstimo esse que o Magnífico recusara por fidelidade à sua aliança com o Rei de França. O dote real de Fiora entrara, então, nos cofres do duque de Borgonha, ao mesmo tempo que a sua vida de esposa se reduzira a uma única noite de núpcias. Em seguida Philippe voltara a partir, de madrugada, para se ir deixar matar, já que, pensava ele, sujara o seu nome com aquela união com a filha de um incesto. Fiora, que o amava, chorara muito, mas agora seria difícil adivinhar quais eram, ao certo, os seus sentimentos para com o marido fugitivo. Amá-lo-ia ainda ou tê-lo-ia acrescentado ao número daqueles de quem se queria vingar? Era verdade que Selongey reaparecera discretamente em Florença no momento em que a fortuna dos Beltrami se afundava, mas também era verdade que voltara a partir ainda mais depressa sem procurar saber o que acontecera à sua jovem mulher. Quereria ele revê-la, ou fora em busca de novos subsídios para o seu senhor?
Consciente do silêncio que se seguiu às suas últimas palavras, Demétrios, após um breve olhar a Fiora, que cavalgava impávida a seu lado, retomou a palavra, contentando-se em gabar o encanto da paisagem e a beleza opulenta daquela cidade de Dijon, onde os duques da Borgonha tinham acumulado obras de arte e belos edifícios. Exemplo disso era a Santa Capela coroada de ouro, onde estavam os trechos das escrituras do Tosão de Ouro, a ordem de cavalaria fundada pelo pai do Temerário e da qual Selongey era cavaleiro.
De facto, Fiora não o escutava. A violência dos dramas por que passara na última Primavera atenuava-se para dar lugar à recordação daquilo por que tinham passado os seus jovens e imprudentes pais. Seria a magia própria daquela terra da Borgonha, pela qual se sentira atraída mal pusera nela os pés? A verdade é que Jean e Marie de Brévailles se aproximavam cada vez mais dela à medida que a jovem recuava no tempo para se juntar ao drama de ambos. Junto do priorado de Larrey havia uma pequena casa cujas paredes baixas confinavam com as do convento. Era uma propriedade minúscula, composta por uma vinha, uma horta com algumas árvores frutíferas e uma casa baixa, abrigada sob um telhado de duas águas. Um homem, usando um avental de tela e os longos cabelos saindo de um gorro de lã, trabalhava, curvado sobre as cepas cobertas de folhas verdes. Era um homem idoso, mas, quando se endireitou, apoiando as mãos nos rins que lhe deviam doer, puderam ver que era grande e ainda vigoroso.
É ele disse Léonarde. Quereis que lhe fale?
Não, obrigada respondeu Fiora. Prefiro lá ir eu mesma. Não vos importais de esperar um momento?
A jovem saltou para terra, caminhou na direcção da cancela feita de grossos ramos que fechava a pequena propriedade, empurrou-a e dirigiu-se ao velho que, com uma mão em frente dos olhos, a viu avançar de costas para o sol.