Onde queríeis qu’ela fosse? Ela nunca sai e desde qu’o senhor está doente só se vê o intendente e uma rapariga da cozinha, qu’é tão faladora com’uma carpa.
Ele está doente? interveio Demétrios. Maravilhoso. Precisamente, eu sou médico. E de que sofre ele?
O camponês coçou a cabeça, fez um esforço supremo e meritório de reflexão e, finalmente, abanou a cabeça com uma careta significativa:
Acho que ninguém por aqui sabe. Quando perguntamos por novidades, respondem-nos que não está melhor. Em todo o caso, médico ou não, espantar-me-ia muito se vos abrissem a porta.
Porquê? perguntou Fiora.
Porque nunca abrem a ninguém: nem a monges, nem a mendigos, nem a saltimbancos, nem a viajantes atrasados. Má casa, aqueFonde não se dá hospitalidade cristã... É preciso dizer, de qualquer maneira, quhouve muitas infelicidades por aqui...
Visivelmente, o homem só queria dar à língua, mas Fiora sabia tanto como ele e talvez mais acerca dos sofrimentos que se tinham abatido sobre os proprietários daquele castelo. A jovem agradeceu ao camponês por meio de uma moeda e, logo que o resto do grupo se juntou a ela, guiou resolutamente o seu cavalo na direcção das torres solitárias. Demétrios alcançou-a, pretendendo prosseguir com as suas cautelas, mas Marguerite seguia-o de perto e era impossível discutir diante dela.
O nevoeiro matinal desapareceu por cima do Doubs, deixando ver os turbilhões que agitavam a água verde, Em seguida, o caminho afastou-se já perto do castelo para meter por um pequeno bosque, para lá do qual aperceberam algumas casas simples cobertas de colmo e o pequeno campanário de uma igreja... Uma vereda invadida por ervas daninhas, que não tinha sinais de qualquer passagem, abria-se à esquerda e permitia aceder à pequena fortaleza. Fiora dirigiu para ali o seu cavalo e rapidamente encontrou a ponte fixa onde deveria ligar a ponte levadiça assim que a baixassem. Mas naquele momento esta erguia-se, qual muralha intransponível, do outro lado de um grande fosso coberto de mato que a água do rio enchia quase até à borda. Em frente, fechado como um punho serrado, mudo e silencioso como um túmulo, Brévailles erguia as suas pedras sombrias e orgulhosas, que pareciam desafiar o Sol claro daquele dia de Verão...
Sem pôr pé em terra, Esteban levou à boca a trompa de corno ornada de prata que lhe pendia da cintura e lançou um som prolongado que fez voar uma família de pica-peixes. Esperaram, mas ninguém apareceu.
Será mesmo este o castelo da minha avó? perguntou Marguerite, que se mantinha ao lado de Fiora.
Pelo que sei, é respondeu esta. Por que perguntais?
- Por nada, simplesmente parece-me muito triste. A nossa casa de Au tun não o era tanto. Por que razão a minha mãe não gostava dela?
Talvez porque o marido que a levou para lá não lhe tenha sabido conquistar o coração. Uma choupana vale mais do que um castelo, se o amor a habita.
Ela poderia ter-me amado, a mim? Mas não me amava, senão não me tinha abandonado... Era a segunda vez, desde que fora salva, que Marguerite fazia alusão a Marie. A primeira fora enquanto falava com Léonarde, que parecia inspirar-lhe uma confiança muito particular, mas a velha donzela não insistira porque pensara perceber que Marguerite detestava Marie quase tanto como o seu marido. A crueldade de Regnault du Hamel não poupara à criança nenhum pormenor horrível ou sórdido e, para ela, a sua mãe não passava de uma mulher perversa e depravada, que abandonara o lar para saciar os seus baixos instintos e pelos quais fora muito justamente punida. Fiora tentara, um dia, modificar aquele julgamento sem concessões, mas Marguerite fechara os olhos, afirmando que aquilo não a interessava... Talvez fosse essa a razão primordial por que Fiora não conseguia ligar-se, realmente, à sua meia-irmã.
A jovem deteve o braço de Esteban, que se aprestava para renovar o apelo.
Preferis, antes que eu vos conduza a um convento qualquer? perguntou ela.
Mas Marguerite abanou a cabeça cujos magníficos cabelos louros, agora limpos e perfeitamente entrançados, brilhavam ao soclass="underline"
Não... Já que a minha família mora aqui, não tenho nenhuma razão para desejar viver noutro sítio. É uma casa nobre e talvez gostem de mim...
Aquilo foi pronunciado em voz baixa, tranquilamente, quase sem entoação e, no entanto, o coração de Fiora apertou-se. Com um gesto, a jovem fez sinal a Esteban para chamar e pela segunda vez a trompa lançou o seu mugido para o ar calmo da manhã.
A sua insistência foi recompensada. Uma cabeça provida de elmo apareceu nas ameias, ao mesmo tempo que uma voz rude gritava:
Quem vem lá e que quereis?
Que baixem a ponte, porque temos assuntos a tratar aí dentro lançou Esteban com uma soberba digna de um grande de Espanha, mas que não pareceu produzir o efeito desejado.
Segui o vosso caminho. Aqui ninguém entra!
Por sua vez, Demétrios tomou a palavra:
Mas terá que ser. Ide dizer a dame de Brévailles que
o seu genro, messire Regnault du Hamel, morreu e que nós lhe trazemos a donzela Marguerite, sua neta!
No alto das muralhas o homem pareceu hesitar por um ins tante sobre o que conviria fazer e, finalmente, gritou:
Eu vou ver! E desapareceu...
A espera que se seguiu pareceu interminável. Escarranchada em cima do seu cavalo, que esgravata a terra com um casco, impaciente, Fiora ia pedir a Esteban que tocasse uma terceira vez quando se ouviu, no interior do castelo, uma espécie de estrondo, e lentamente, muito lentamente, a grande ponte levadiça começou a baixar na sua direcção, enquanto a grade se erguia, rangendo.
Bem, vamos! disse Demétrios com um suspiro que parecia subir da terra, de tal maneira fora profundo. Fiora sorriu-lhe:
Vês como conseguimos entrar?
Esperemos que possamos sair com a mesma facilidade. Este castelo parece mesmo uma prisão.
O interior, no entanto, era mais agradável. Ao penetrarem no pátio, cujo centro era ocupado pelo torreão, os viajantes viram que uma habitação de dois andares, iluminada por belas janelas de caixilhos esculpidos, dos quais os mais altos estavam ornamentados com empenas floridas, estava encostada à muralha que dava para o rio. Chegava-se a ela por meio de um patamar com três degraus, no alto do qual um ancião, todo vestido de negro, se mantinha de pé numa atitude plena de dignidade.
Os recém-chegados puseram pé em terra, entregando as rédeas dos cavalos a um criado da estrebaria. Com toda a evidência, a sua chegada constituía um acontecimento importante e, perto das cozinhas, três criadas observavam-nos com caras espantadas, ao mesmo tempo que limpavam as mãos aos aventais. Um miúdo, que perseguia umas galinhas, acorreu e ficou plantado, com um dedo na boca, em contemplação muda.
Fiora puxara o véu para o rosto tanto quanto o permitia a decência, contudo foi para ela que o velho servidor olhou primeiro:
- Podemos ver a dona da casa? perguntou ela docemente. Está aqui a sua neta, a donzela Marguerite, que nós nos encarregamos de lhe trazer...
O ancião saudou como homem que sabe qual é o seu papel mas voltou a perguntar:
Podeis dizer-me, enfim, quem sois?
Os nossos nomes não vos dirão nada interveio Demétrios porque somos viajantes estrangeiros, e só o acaso nos permitiu prestar ajuda à donzela Margueritte, que está aqui connosco. Esta jovem dama acrescentou ele designando Fiora, que sentira uma emoção súbita no momento de entrar naquela casa que vira crescer os seus jovens pais e o acordar da sua paixão fatal esta jovem dama é uma nobre florentina, donna Fiora Beltrami, e esta é dame Léonarde Mercet, sua governanta. Quanto a mim, chamo-me Demétrios Lascaris, príncipe e médico e venho de Bizâncio.
O velho servidor aprovou com a cabeça e fez sinal aos recém-chegados para que o seguissem por uma bela escadaria de pedra perfeitamente conservada e que conduzia a uma grande sala, onde, entre uma chaminé apagada e uma estreita janela que dava para o rio, uma dama de luto estava sentada numa grande cadeira de braços, com um rosário entre os dedos. Devia ter sido muito bela e ainda conservava alguns reflexos dessa beleza passada, mas, sob a sua alta coifa negra os seus cabelos e o seu rosto eram de uma brancura diáfana. Os olhos estavam vermelhos devido a demasiadas lágrimas. Estas haviam descolorido as pupilas, cujo azul mal se percebia. A expressão habitual daquele rosto devia ser de permanente tristeza, mas, naquele instante, parecia animado por um raio de luz. A dama levantou-se para acolher os visitantes e Fiora apercebeu-se de que era quase tão alta como ela... e que tremia como uma folha, perturbada por uma emoção que não conseguia dominar. - Disseram-me disse ela com uma voz emocionada, cuja doçura atingiu Fiora que a minha neta Marguerite se encontra entre vós?... Mas, como é possível?... Há anos que não sei nada dela. Cheguei a acreditá-la morta...