- Era, sem dúvida, o que desejava o seu pai disse Demétrios com a sua bela voz grave mas, agora, messire du Hamel já não o é. Morreu há três semanas e nós tivemos a felicidade, como vizinhos, de recolher a donzela Marguerite, que ele mantinha em sua casa como numa prisão. Ela só vos tem a vós no mundo e nós pensámos que era nosso dever trazer-vo-la...
E fizestes bem. Como agradecer-vos?... Marguerite... não vens até mim?
Mas já a jovem se precipitava e ajoelhava diante dela. A sua estranha indiferença acabava de desaparecer de repente e ela vertia abundantes lágrimas em cima das mãos trémulas que se tinham estendido para ela e que a erguiam. Por um momento, as duas mulheres permaneceram estreitamente abraçadas. De pé, a alguns passos de distância, Fiora contemplava-as com um pouco de amargura. Sentia uma vontade súbita de, também ela, se atirar para aqueles braços afectuosos e abraçar aquele rosto pálido. Porque aquela mulher era sua avó, mais ainda, talvez, do que de Marguerite e ela agora pensava que devia ser muito bom ser a neta de Madeleine de Brévailles...
Mas esta dominou a sua emoção. Sem deixar a mão de Marguerite, ofereceu aos seus hóspedes inesperados um sorriso encantador.
Acabais de me restituir a vida e eu não vos acolho como devia! Sentai-vos, peço-vos e contai-me tudo o que sabeis desta criança. Vou mandar servir uns refrescos enquanto esperamos pela hora da refeição. Também vos mandarei preparar os quartos...
Mas Fiora emitiu vivos protestos:
Não vos deis ao incómodo, dame, peço-vos. Nós estamos em viagem, os meus companheiros e eu e não desejamos atrasar-nos, porque a estrada que se estende na nossa frente ainda é longa.
Por mais longa que seja, suporta uma paragem? Tendes tantas coisas para me contar...
Sem dúvida... mas disseram-nos que o senhor deste castelo estava doente e nós não queremos...
Fiora era incapaz de dizer por que razão, tendo chegado àquele castelo com a intenção de matar Pierre de Brévailles, desejava, agora, afastar-se o mais rapidamente possível. Pensara entrar como libertadora, mas a mulher que tinha diante de si não parecia necessitar de qualquer tipo de socorro. E teve a certeza quando dame Madeleine declarou tranquilamente:
O meu marido está doente, com efeito, mas asseguro-vos que a vossa presença não o incomodará. Não vos atormenteis por ele, portanto, e conversemos...
Enquanto Demétrios fazia para a sua anfitriã um relato um pouco arranjado do salvamento de Marguerite, Fiora, que preferira de propósito sentar-se de costas para a luz da janela, só o escutava com um ouvido. A jovem esquadrinhava aquela sala de móveis severos mas admiravelmente conservados. Olhava para a mesa que duas criadas estavam a pôr, a toalha de uma brancura deslumbrante que elas estendiam e os diferentes objectos que elas lhe punham em cima, todos resplandecentes. Olhou também para a sua anfitriã, sentada num banco comprido e estreito guarnecido de almofadas e Marguerite, cuja mão ela continuava a segurar, sentada junto dela e não tirando dela os olhos. Ambas saboreavam, era evidente, um momento de inefável felicidade. Sorriam uma para a outra e riam mesmo de vez em quando como duas raparigas, se bem que a história do grego não fosse recreativa e o seu riso soava de maneira bizarra numa atmosfera que Fiora achava cada vez mais pesada... Sentiu-o quase a ponto de sufocar e deixou deslizar ligeiramente o seu véu. Uma das criadas, a mais velha, deixou cair bruscamente as facas que segurava, que caíram nas lajes ao mesmo tempo que os seus olhos se arregalavam de estupefacção. Dame Madeleine lançou-lhe um olhar irritado, virou depois os olhos para Fiora e disse-lhe a meia-voz, em tom fúticlass="underline"
As nossas criadas camponesas são muito desajeitadas. Sois mais bem servida em Florença?
dame Léonarde responder-vos-á melhor do que eu sobre esse assunto, mas nunca me queixei dos meus servidores...
Que sorte que tendes!
Em seguida, virando-se para Demétrios, cujo olhar por entre as pálpebras comprimidas se fizera subitamente agudo, encorajou-o:
Portanto, vós dizíeis que...
A visão do rosto de Fiora, que acabava de fulminar de estupor uma simples criada, não lhe causara, aparentemente, qualquer emoção. E assim foi durante toda a refeição que se seguiu. Demétrios continuava a fazer as despesas da conversação e tinha começado a contar minuciosamente algumas das suas viagens às duas interlocutoras que, encantadas, tagarelavam alegremente com ele. Marguerite parecia ter esquecido por completo as duas companheiras e nunca virava os olhos para Fiora ou para Léonarde, que, silenciosas, comiam com as pontas dos dedos. A ideia de passar a noite naquela morada era insuportável à jovem e estava um pouco zangada com Demétrios por aquela situação toda. Seria ele o mesmo que, ainda há pouco, lhe suplicava que renunciasse aos seus projectos?
Que restava, aliás, daqueles famosos projectos àquela hora, em que, sentada à mesa de um avô detestado, comia o seu pão? A morte brutal de um homem que parecia ter pouco espaço no espírito da sua mulher ela disfarçava sempre que o grego tentava saber mais acerca da doença de Brévailles seria de natureza a melhorar a situação? Ela parecia perfeitamente segura de si e daquela casa, onde todos lhe obedeciam sem hesitar...
A refeição estava a terminar com umas compotas refinadas acompanhadas de belas fatias de boichetl que cheiravam deliciosamente, quando o ancião que recebera os viajantes e devia ser o intendente, reapareceu à entrada da sala:
O senhor disse ele cerimoniosamente desejaria receber pessoalmente a jovem dama estrangeira que trouxe a donzela Marguerite...
E como todos os outros convivas se levantassem ao mesmo tempo, acrescentou:
Ele deseja vê-la só!
Mostrai-me o caminho consentiu Fiora. Sigo-vos. Sem pensar, sequer, em desculpar-se perante a sua anfitriã
e com uma espécie de alívio, a jovem deixou a mesa para se dirigir para a escadaria. Para seu espanto, em vez de a subirem para o andar de cima, desceram-na. Atrás do intendente, Fiora atravessou
1 Em italiano no original. Antigo nome das broas de mel
o pátio e penetrou no torreão. A despeito do calor exterior, uma capa de frio e de humidade caiu-lhe sobre os ombros mal transpôs a porta, mas mal deu por ela, porque o seu espírito estava cheio de perguntas... De que doença sofreria o senhor de Brévailles para que o instalassem naquele torreão antigo?
Sempre precedida pelo seu guia, subiu um andar e penetrou numa sala redonda que lhe pareceu tanto mais imensa quanto sombria e desguarnecida de móveis, à excepção de um leito isolado por entre as sombras densas e dois ou três tamboretes. Mas o espectáculo que a esperava não era menos impressionante: junto de uma abertura pouco mais larga do que uma seteira, um homem barbudo e de longos cabelos grisalhos estava sentado numa alta cadeira de espaldar de madeira negra com um cobertor sobre os joelhos e totalmente imóvel. Perto dele, quase tão rígido e quase da mesma idade, aliás, um homem de armas estava de pé, segurando numa mão um pendão coberto com um véu negro e, na outra, uma espada desembainhada. Surpreendida, Fiora parou na soleira da porta que o intendente abrira na sua frente: