Aproximai-vos! intimou uma voz que parecia emanar das profundezas das fundações.
Fiora,avançou e, por trás de si, a porta fechou-se, sem barulho. A jovem avançou como que num sonho. Então era aquele o avô cuja perda ela jurara? Não parecia nada fraco. Pelo contrário e se bem que a luz fosse incerta, o que a barba e os cabelos deixavam transparecer do seu rosto só revelavam saúde... Maquinalmente, a jovem procurou na cintura o punhal que as pregas do seu vestido dissimulavam e parou a alguns passos dos dois homens...
Aproximai-vos mais disse Brévailles. Vejo-vos mal!
Ela alcançou a mancha de sol que a estreita abertura lançava nas lajes, na ponta de um raio luminoso onde dançavam miríades de grãos de poeira. E ficou ali sem se mexer mais, consciente daquele olhar quase imóvel, que a perscrutava intensamente...
Justine tem razão disse o velho senhor como que para si mesmo é espantoso...
Em seguida, secamente, ordenou:
Aubert, sai!
A estátua armada que se encontrava a seu lado protestou:. Quereis que me afaste, senhor? Olhai que eu sou o vosso braço, a vossa força...
Espero não precisar nem de uma coisa, nem de outra. Vai! Eu chamo-te mais tarde...
Estais certo de que não precisais de nada?
Eu nunca preciso de nada e agora menos do que nunca disse o senhor sem afastar os olhos de Fiora. O ancião esperou que o seu escudeiro tivesse transposto a porta e continuou:
Então, fostes vós que conduzistes até aqui essa Marguerite, que nós julgávamos perdida? Onde a encontrastes?
Em Dijon, acorrentada na cave do homem indigno que era o seu pai, ao que parece. Pouco faltou para que ela se perdesse para sempre, de facto...
E ele? Pareceu-me compreender que tinha morrido? De quê?
De medo! Por ter visto um fantasma...
Estranho! Não o cria emotivo a esse ponto! Mas tudo depende, evidentemente, do fantasma em questão. Talvez se parecesse convosco?
Talvez...
É o que eu supunha... Vós vindes de Florença, disseram-me? Qual é o vosso nome?
Fiora... Fiora Beltrami. De facto, sou florentina... Seguiu-se um silêncio apenas perturbado pela respiração daqueles dois seres que, ao primeiro olhar, se tinham reconhecido como inimigos. Nenhuma cortesia atenuava o tom de voz agressivo de ambos. As palavras caíam, no limite da insolência, de um lado e de outro, cortantes como facas. Estabelecera-se um duelo desde o primeiro momento entre aquele ancião tão rígido como uma estátua, apoiado no braço da sua cadeira e aquela bela jovem de pé na sua frente, que refreava o melhor que podia a sua aversão instintiva.
Brévailles emitiu uma pequena risada seca e continuou, mais mordaz do que nunca:
Florentina? Ora vamos! Vós sois a filha ”deles”! Pensais que ignoro o que aconteceu depois da execução daqueles dois miseráveis? Antes de eu o expulsar daqui, o velho louco do Antoine Charruet teve tempo de contar tudo. Sei que um mercador de Florença apanhou o fruto desastroso do incesto e do adultério... Então, não dizeis nada? É isso, não é? Adivinhei?
Eu sou filha deles, efectivamente, mas sinto-me orgulhosa, vede lá, porque eles foram vítimas antes de mais: vossas vítimas! Fostes vós a causa primeira do drama de que eu sou originária...
Eu? Como ousais?
Ouso e volto a ousar! Nada teria acontecido de irremediável se, quando vos apercebestes dos laços demasiado ternos entre Marie e Jean, tivésseis escolhido para ela outro marido que não aquele du Hamel. Casada com um homem novo, amável e apaixonado, ela teria esquecido o seu irmão. Mas vós preferistes o pior e porquê? Só porque ele era rico? Infelizmente era um monstro ignóbil, que apenas soube martirizá-la, assim como martirizou a filha...
Eu apanhei o primeiro partido conveniente que apareceu. Já começavam a murmurar acerca...
De Jean e Marie? Nem sequer conseguis, ainda hoje, pronunciar os nomes deles, não é verdade? Envenenam-vos a boca? Quanto à fortuna de du Hamel, ides poder reivindicá-la, agora que tendes Marguerite! Porque ela tem direito, é a herdeira! No entanto, não creio e ainda bem! que possais gozá-la durante muito tempo...
O ancião teve uma risada de troça:
Também ledes o futuro? Em todo o caso, não sois muito lógica. Odiais-me, não é verdade? Nesse caso, por que razão trouxestes para aqui Marguerite e a sua herança?
Porque, depois de tantos anos de opressão e sofrimento, ela tem direito a uma felicidade legítima e eu espero que ela a encontre junto da avó. Quanto a vós...
Quanto a mim? lançou ele, desafiando-a com arrogância.
Não tereis oportunidade de a tornar infeliz, porque eu estou aqui para vos matar...
Matar-me? E como?
Com isto.
O punhal acabava de aparecer, firmemente seguro na sua mão. Com um movimento rápido, Fiora passou para trás da cadeira e encostou a lâmina à garganta de Brévailles...
Sobretudo, não chameis ninguém! Não teríeis tempo de terminar o grito...
Por que haveria eu de chamar? Matai-me, se assim o quereis... e se o parricídio não vos mete medo!
Não mete, porque vós, aos meus olhos, sois um homem quase tão desprezível como Regnault du Hamel. Se tendes alguma oração a dizer, despachai-vos...
A despeito da sua firme resolução, a força de ânimo daquele homem confundiu-a: nem sequer mexera um braço para tentar afastar o punhal da sua garganta. No entanto, não lhe devia faltar a força?
Eu nunca fui homem de padre-nossos. Mas, no fim de contas, talvez tenhais razão em me assassinar. A vinda inopinada dessa Marguerite não me traz qualquer alegria: não passa da filha de uma puta incestuosa e...
O ancião não terminou a frase. A porta, violentamente aberta, bateu contra a parede e Madeleine de Brévailles precipitou-se:
Não o mateis, Fiora! Dar-lhe-íeis um grande prazer! Se quereis, mesmo, vingar a vossa mãe, rezai para que ele viva ainda muitos anos!
Estupefacta, Fiora viu na sua frente aquela nova e insuspeita mulher, que se erguia ali diante deles, a boca torcida pela amargura e os olhos brilhantes de ódio. Nada parecida com a avó meiga que ainda há pouco amimava Marguerite e brincava com ela. Esta rejeitava totalmente os anos de sofrimento e rancor e, face a ela, o homem acusado encolhia-se, mudo, se bem que o seu rosto reflectisse uma raiva impotente.
Este gritou:
Mata-me! Por que detiveste o teu braço? Eu só cometi crimes e fico feliz... Mata-me, estou-te a dizer!
Imóvel entre dame Madeleine e o marido, Fiora olhou-os a ambos sem conseguir compreender. Assim, não viu Demétrios entrar, nem se apercebeu da sua presença, senão quando o viu, de repente, junto do doente, erguendo um braço e tirando o cobertor para lhe examinar as pernas...
Que significa isto? interrogou Fiora. Demétrios abanou a cabeça e encolheu os ombros:
Este homem está paralisado. É espantoso que ainda consiga falar... Como aconteceu isto?
Uma queda do cavalo há mais ou menos um ano declarou a dama em tom satisfeito, como se tivesse sido ela mesma a causa e a força que tinham provocado o acidente. Desde então, voltei a viver. Acabaram os anos de escravidão! Acabou a impiedosa tirania que durante anos aterrorizou este castelo! Agora sou eu a senhora e já que, graças a Deus, a minha pequenina me foi devolvida, a nossa velha morada vai abrir-se e animar-se de novo! Doravante temos muitos dias de alegria pela frente...
És louca! Ficaremos menos desonrados só porque recuperaste um ser do teu sangue? Olha que esta que tu impediste de me matar também é tua neta!
Eu sei perfeitamente quem ela é. Não esqueci o nome do mercador florentino, de quem me falou o padre Charruet...