E também queres ficar com ela? Ela odeia-me com todas as forças e, mais dia menos dia, há-de matar-me...
Não sou eu que não quero ficar com ela disse Madeleine com uma tristeza súbita bem pelo contrário! Ela é que não quer ficar... É demasiado bela e viva para esta morada austera... Mas espero ardentemente que ela nunca esqueça uma avó que a terá sempre no coração...
A dama abriu os braços e Fiora atirou-se a eles de lágrimas nos olhos.
Eu também nunca vos esquecerei! Há bocado... estava cheia de inveja de Marguerite...
Que cena familiar tão enternecedora! guinchou Brévailles. Que quadro encantador! E eu, fui esquecido? Ninguém me abraça, a mim? Sempre gostei que uma rapariga me acariciasse... e algumas vezes lamentei não ter tentado a minha sorte com aquela bela garça, a Marie, já que não lhe custava nada deitar-se com o irmão. Por que não também comigo?
Demétrios segurou o braço de Fiora que, levada por uma cólera selvagem, ia atirar-se sobre ele de punhal ao alto. O médico deteve-a e depois, virando-se para o enfermo e sem largar a jovem, pronunciou firmemente:
Não conseguireis, messireí Fiora tem de admitir que, no que vos diz respeito, a vingança pertence ao Senhor. A que ele exerce, por agora, é terrível, mas vós merecei-la amplamente. Que o Seu nome seja bendito! E agora vamos, são horas de partirmos...
Um após outro abandonaram a sala redonda onde o velho Aubert foi retomar, junto do enfermo, a sua guarda fiel e irrisória. A última imagem que Fiora levou dele foi a de um rosto barbudo e uns olhos cintilantes de furor impotente, mas de onde deslizavam pesadas lágrimas...
Partiram sob o calor ainda penoso daquela tarde de Julho, se bem que o dia já fosse avançado. O ar vibrava à superfície da água, sobre a qual deslizava uma cobra. Tudo era silêncio, quando, subitamente, um relâmpago listrou o céu branco...
Se, pelo menos, pudéssemos ter uma bela tempestade! suspirou Léonarde, abanando-se com um lenço. Nada me agradaria mais do que uma boa chuvada...
A vós, talvez, mas não aos camponeses! Uma chuvada, agora, pode estragar-lhes o feno exclamou Demétrios, vigiando Fiora pelo canto do olho.
Depois de se ter despedido da dama de Brévailles, a jovem não descerrara os dentes. Prosseguia o seu caminho de olhar ausente. Quando chegaram à curva do caminho de onde ainda se podia ver o castelo guardando a margem do rio, ela parou o seu cavalo e ficou ali, hirta.
Demétrios respeitou a sua meditação por alguns instantes, mas como Fiora parecia eternizar-se, o médico aproximou-se dela:
Estás arrependida de alguma coisa?
Talvez... mas não do que imaginas. Arrependo-me de ter vindo...
Não era preciso trazer Marguerite?
Podia ter-te encarregado disso e esperar por ti em Beaune, por exemplo...
Querias vingar-te, fosse a que preço fosse. Lembra-te que tentei demover-te!...
Eu sei... E reconheço que tinhas razão, porque Deus já se encarregou! O Senhor é bem ilógico, aliás! Deu o seu golpe aqui, mas deixou prosperar o monstruoso du Hamel...
Tudo isso significa que tu lamentas... abandonar este local? No fim de contas, é aqui que está a tua verdadeira família e é natural que queiras viver aqui. Se for esse o caso, podes regressar em companhia de dame Léonarde. Desligo-te do teu juramento... Não ficarei, por isso, menos teu amigo.
Não compreendes, Demétrios! É verdade que o meu coração estava pronto a entregar-se a Madeleine de Brévailles. Os braços de uma avó são... infinitamente doces. Mas, ficar aqui, nunca! Aliás, creio que Marguerite não teria gostado muito acrescentou ela com um meio sorriso.
De facto, o rosto de Marguerite ficara, subitamente, com uma expressão desgostosa quando dame Madeleine, no momento da partida, abraçara Fiora com uma grande ternura, enquanto as suas despedidas se tinham limitado a um simples beijo. Estava visivelmente aliviada por deixar aquela jovem, talvez demasiado bela, a quem devia a vida.
De qualquer maneira, ela é filha de du Hamel observou Léonarde, que se aproximara. E vós fizestes bem em pedir a dame Madeleine silêncio absoluto acerca dos vossos laços de parentesco. Creio bem que vos detestaria se soubesse que sois irmã dela. Quanto a vós, meu cordeirinho, essas penas passarão mais depressa do que pensais! O vosso destino não está aqui.
Eu sei! Mas quis olhar mais uma vez para estes lugares que nunca mais verei, certamente... Mesmo que, um dia, regresse à Borgonha... O que pode sempre acontecer.
Agora que estava desligada dos deveres de vingança que se impusera na Borgonha, Fiora podia deixar o seu coração e o seu espírito vagabundear atrás de um outro borgonhês, que era seu marido. Recordava que estava no país dele e não sem uma doce nostalgia, porque não recebera resposta à pergunta que fizera a si própria ao deixar Florença: fora para a ver, a despeito do pacto assinado com Francesco Beltrami, que Philippe voltara disfarçado à cidade dos Médícis? E aquilo era infinitamente mais importante do que o ciúme de uma meia-irmã, à qual nada a ligava...
Resolutamente, a jovem deu meia volta ao seu cavalo para retomar o caminho e não permitiu mais ao seu espírito que regressasse a Brévailles, onde desejava que a sua avó encontrasse, enfim, um pouco de verdadeira felicidade junto da filha de Regnault du Hamel... O tempo estava bom, ainda não tinha dezoito anos e amava apaixonadamente o homem cujo anel lhe pendia no peito, entre os seios, ao abrigo do vestido... Nem sequer a imagem distante e indistinta, aliás, do impiedoso duque da Borgonha, conseguia perturbar aquele minuto de paz feliz que concedia a si própria. Por que razão, portanto, o céu não haveria de se encarregar dele, como tinha feito a Pierre de Brévailles? Os rumores que ouvira, desde a sua chegada à Borgonha, podiam dar-lhe sobre aquele assunto alguma esperança, porque os inimigos encarniçados na perda do Temerário começavam a formar uma legião: os suíços, os príncipes alemães, o duque da Lorena e, sobretudo, sobretudo, aquele Rei de França, de quem se murmurava, justamente, que era o mais hábil de todos os diplomatas e talvez o mais poderoso desses inimigos. As pessoas diziam que entre ele e o Temerário o ódio não teria fim senão com a morte de um deles. E era com aquele soberano enigmático porque a sua imagem diferia segundo aqueles que falavam dele que ela e Demétrios iam ter de comum acordo... não sem um pequeno desvio que Fiora estava decidida a conseguir...
Fizeram uma pausa em Beaune, numa muda próxima do admirável Hotel-Dieu, edificado trinta e dois anos antes pelo chanceler da Borgonha, Nicolas Rollin e pela sua esposa Guigone de Salins. Sem ter o esplendor arquitectónico do seu vizinho, o albergue do Grand Saint Vincent ofereceu-lhes, com os seus lençóis cuidadosamente passados, a sua cozinha abundante e variada e a frescura da vinha que lhe revestia as muralhas, uma paragem tão repousante para o corpo como para o espírito. Após o jantar, que lhes serviram no quarto com as janelas todas abertas para os telhados escuros do mercado e partilhado por Fiora e por Léonarde, Demétrios procurou, junto do estalajadeiro, o senhor Baudot, qual seria o melhor caminho para se dirigirem a Paris.
Para acalmar as suspeitas daquele bom homem que, como digno servidor do duque Carlos, começava a olhar de viés para aquela gente que queria ir para a capital do ”infame Rei Luís XI”, Demétrios apressou-se a precisar que iam ter com um primo, mercador de tecidos na rua dês Lombards. Satisfeito, Baudot disse-lhe que o melhor caminho, sem a menor dúvida, passava por Dijon e por Troyes, em Champagne, já que aquele que depois de ter atravessado uma parte de Morvan e Auxois, passava pelo vale do Yonne, não estava praticável.
Dizem observou o senhor Baudot que as tropas do Rei Luís, depois da ruptura das tréguas, se atiraram sobre as nossas terras e chegaram até Auxerre, onde devastam, destróem pilham e queimam tudo o que encontram. É mesmo de um homem mau acrescentou ele porque esse Rei sabe bem que monsenhor Carlos que Deus o guarde e lhe dê muita saúde acaba de levantar o cerco a Neuss...