A cidade caiu, por fim? perguntou Fiora, que sabia perfeitamente bem o que se passava, mas que tencionava levar até ao fim o seu papel de estrangeira recém-chegada.
-Sim e não. Abriu-se diante do núncio de Sua Santidade o Papa Sisto, que tomou posse dela em nome da Igreja. Não houve, nem vencedor, nem vencido, mas o nosso duque, mesmo assim, perdeu muitos homens e muito ouro... Tirar proveito disso é indigno!
Achais que sim? perguntou Demétrios com ar inocente. Alguns mercadores flamengos que encontrámos junto de Lyon disseram-nos que o duque, deixando atrás de si o seu exército, se dirigiu em marcha forçada para as suas possessões da Flandres, para ali reunir os Estados e para se encontrar em Calais com o seu aliado, o Rei de Inglaterra, na companhia do qual pretende empreender a conquista de França. Pretenderia, mesmo, fazê-lo coroar em Reims...
O Rei de Inglaterra é irmão da senhora duquesa redarguiu dignamente Baudot. Ele e monsenhor podem muito bem encontrar-se sem más intenções para com a França. Mas as pessoas têm tão má-língua, que são capazes de dizer que, se o Rei Luís nos invadisse, a culpa seria unicamente nossa! Os vossos mercadores, para mim, são uns perfeitos mexeriqueiros e...
Demétrios pôs fim à indignação do bom homem pedindo um pichel do seu melhor vinho de Beaune e, quando este foi servido, virou-se para as suas companheiras.
O nosso caminho está traçado. É preciso regressar a Dijon, mas não entraremos na cidade. Contorná-la-emos para atingirmos a estrada de Troyes, que se encontra a norte...
Passaremos por... Selongey? arriscou Fiora, irritada por se sentir corar, como se fosse culpada de alguma coisa. Quando estávamos em Dijon, soube que essa terra estava para norte...
É verdade respondeu Léonarde com um olhar pleno de compaixão mas isso desviar-nos-ia. Iremos por Troyes. Selongey fica no caminho que vai dar a Langres e, dali, às planícies da Lorena...
O desvio será assim tão grande? Gostava muito de lá ir!
. continuou a jovem com a voz subitamente firme. Não é natural que eu deseje, pelo menos, ver o castelo cujo nome devia ser o meu?
Esperas encontrar lá messire Philippe? perguntou docemente Demétrios. Sabes perfeitamente que ele nunca sai do pé do duque Carlos. Deve estar na Flandres a esta hora, a menos que tenha ficado com o exército no Luxemburgo.
Pelo menos, deixou-o por duas vezes, pelo que sei: a primeira quando nos casámos e a segunda quando foi reconhecido em Florença enquanto a populaça pilhava o meu palácio! Peço-te, Demétrios: leva-me a Selongey! Juro que é a última coisa que peço...
Os grandes olhos cinzentos suplicavam e o médico pensou, até, ver neles uma lágrima. A sua longa mão pousou-se na da sua jovem amiga, compreensiva e apaziguadora:
O desvio será muito grande, dame Léonarde?
Não sei ao certo... mas, pelo menos, uma dúzia de léguas... e por caminhos incertos, que não vão sempre a direito...
Um dia a cavalo traduziu Esteban e nós estamos no Verão. É pouca coisa...
Mas também nos podemos afastar. Eu nasci nesta região, mas nunca me passeei muito...
Bem, perguntaremos o caminho! disse Demétrios com bonomia. Também, não estamos a mais de um dia de distância! Não podemos recusar à dama de Selongey uma visita ao seu domínio. E até pediremos hospitalidade, se quiseres concluiu ele beijando a mão de Fiora. Quem sabe quem encontraremos?
Fiora não respondeu, mas os seus olhos, subitamente cheios de estrelas, traíam a esperança que lhe ia no coração. Já que por agora, as armas do duque Carlos pareciam ter-se acalmado por que não haveria o conde de Selongey de aproveitar para passar alguns dias em sua casa? À ideia de o poder, talvez, rever em breve, o coração de Fiora acelerou e a jovem teve toda a dificuldade em conciliar o sono, ao mesmo tempo que a seu lado, feliz, Léonarde roncava como o fole de uma forja... No fim do segundo dia, Fiora, com o coração a bater sempre ao ritmo da sua esperança, cavalgava através do planalto cortado por bosques e massas florestais a que tinham chegado depois de Til-Châtel e que corria a direito na direcção da cidade episcopal de Langres. Um lenhador, encontrado num cruzamento, indicara o caminho de Selongey:
É a próxima aldeia: um grande burgo no vale de la Venelle, com uma grande igreja e um grande castelo, cujas torres vereis quando chegardes àquela árvore inclinada que vedes além!
Uma moeda recompensara o homenzinho pela sua preciosa informação e, alguns instantes mais tarde Fiora descobria, o castelo do seu marido. A sua emoção duplicou à vista do seu aspecto terríveclass="underline" dez torres redondas, cujas ardósias brilhavam ao sol, guardadas por homens de armas; grandes muralhas sólidas e um torreão maciço, erguendo-se para o céu como o dedo estendido de um gigante. Portanto, aquela era a ”sua” casa, fora ali que ele nascera, que passara a infância e deixara os braços ternos de uma mãe para aprender a rude vida dos homens...
Mas não creio que ele esteja ali! suspirou Léonarde. E Fiora apercebeu-se, então, que acabara de pensar em voz alta...
E porquê?
Nenhum pendão flutua no torreão. O que significa, claramente, que o senhor não está no redil.
Fiora encolheu os ombros, escondendo a sua decepção com um meio sorriso.
Tanto pior! Tentemos, ao menos, que nos concedam hospitalidade por esta noite.
A esperança de encontrar Philippe era fraca e Fiora sabia-o, mas a esperança nunca morre...
Contas dar-te a conhecer como a dama destes lugares?
perguntou Demétrios.
Não. Somos apenas simples viajantes desorientados.
Quando entrar aqui como dona, será nos braços do meu marido... se chegar a encontrá-lo, porque tenho sempre tendência a esquecer-me do terrível desejo que ele tinha de se deixar matar...
. Ele era sincero, sem dúvida cortou Léonarde, que não gostava de ver o espírito de Fiora empenhado em pensamentos tristes mas, pela minha parte, nunca acreditei...
Nem eu disse Demétrios como se fosse o eco. Estou persuadido de que continua vivo.
Fiora endereçou, a um e a outra, um olhar carregado de gratidão por aquelas palavras encorajadoras e apressou um pouco o passo do seu cavalo. Agora, tinha pressa de chegar...
Tinham chegado à aldeia e a barbacã de entrada do castelo já estava à vista quando, desembocando da floresta que coroava o outeiro, apareceram alguns cavaleiros. Os falcões que traziam nos punhos enluvados de couro espesso diziam que vinham da caça e algumas aves pendiam da patilha do selim de um dos homens. Eram seis ao todo: quatro um pouco mais armados do que seria necessário para um divertimento e duas mulheres.
Aquela que ia à cabeça e que ria ao pousar um beijo na cabeça encapuçada da sua ave, devia ter uns trinta anos. Elegantemente vestida de seda azul, tinha longos cabelos louros estreitamente entrançados sob uma pequena coifa de veludo ajustada ao vestido e onde estava ligado um véu azulado. Aliás, era muito bonita e, ao constatá-lo, o coração de Fiora estremeceu.
Os caçadores, que não tinham reparado nos quatro cavaleiros, entraram no castelo com o comportamento natural de gente que regressa a sua casa.
Quem serão? perguntou Léonarde sem esconder a sua surpresa. Messire Philippe não tinha dito que não tinha família?
Podem ser convidados disse Demétrios. Mesmo na ausência do senhor, é possível... O melhor é nós entrarmos, também...
Mas Fiora franzira o sobrolho e parou. A jovem avistou uma lavadeira que, de cesto na anca, subia do rio e chamou-a:
Perdoai-me se vos pareço curiosa disse ela gentilmente mas eu pensava que o castelo estava desabitado. O conde Philippe não está, pois não?
A serva não devia ser um poço de inteligência, porque endereçou a Fiora o seu mais sereno sorriso.