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Mas, é claro que está!

Nesse caso, aquela dama que acaba de entrar? Sabeis quem é?

Bem... é a dama do castelo. É dame Beatrice...

Beatrice... de Selongey?

Bem... sim.

Aquele ”sim” atingiu Fiora como uma bofetada. Subitamente, ficou muito vermelha. Sentindo que ia começar a gritar, a soluçar, ou entregar-se a qualquer outra manifestação insensata, apertou as rédeas, deu a volta ao cavalo que quase atropelou a lavadeira e, espetando os calcanhares nos flancos do animal com um grito selvagem, lançou-se a galope através da aldeia, que atravessou como se fosse uma bala de canhão. O apelo de Demétrios chegou-lhe de muito longe, como que do fundo do tempo:

Pára! Por piedade...

Piedade por quem? E para quê? Aliás, mesmo que quisesse, ser-lhe-ia impossível parar o animal. Com um olhar louco, as orelhas esticadas para trás e a boca cheia de espuma, este continuava a galopar, mas Fiora, perdida de dor e de vergonha, não via nem ouvia nada, esperando passivamente que aquela corrida para o abismo acabasse na morte. E esta não estava longe, porque o animal, enlouquecido, corria a direito na direcção de um bosque espesso cujos ramos baixos representavam outras tantas armadilhas terríveis.

Esteban lançara-se no encalço de Fiora seguido de Demétrios, que, mais pesado, não podia seguir no mesmo galope e depois de Léonarde, que, pouco familiarizada com o grande galope, soluçava perdidamente. O castelhano era um cavaleiro notável. Deitado sobre o pescoço do seu cavalo que não cessava de chicotear e fazendo com ele um só corpo, esforçava-se por ganhar terreno, na esperança de alcançar Fiora antes do bosque, porque tinha plena consciência do perigo que ela corria.

Não gritava nem chamava, porque isso só teria excitado ainda mais o animal embalado. Mas conseguiu aproximar-se até se encontrar bota com bota com a jovem, que, via-se, não resistia não se defendia... Então, metendo as rédeas na boca, Esteban inclinou-se e, agarrando Fiora pela cintura, conseguiu arrancá-la da sela e deitá-la atravessada na sua frente. Só nesse instante ele deteve a sua montada, que travou com os quatro cascos e acabou por parar, encharcado em suor. Fiora deslizou para o chão, inconsciente, enquanto o seu cavalo, liberto do peso, foi de encontro a um arbusto, de onde se levantou sem outros danos que não umas arranhadelas.

A noite estava a chegar e era preciso arranjar abrigo. Léonarde, que, já um pouco refeita do medo que sentira, se lhes juntara e se esforçava por reanimar Fiora, propôs o priorado de Til-Châtel, onde a casa de hóspedes talvez os recebesse.

Se conseguirmos lá chegar, é a melhor solução disse Demétrios. Mas, por todos os diabos do inferno, gostaria de estrangular com as minhas próprias mãos aquele Philippe de Selongey...

Eu não consigo compreender murmurou Léonarde. Se algum dia vi um homem apaixonado, foi ele... quando deixou a câmara nupcial.

Vá-se lá tentar perceber os mistérios da alma! Ele amava-a, sem dúvida, nesse momento, mas achou mais cómodo esquecer que já era casado. Julguei-o mal...

Tendo recobrado a consciência, Fiora agradeceu a Esteban e depois, sem mais comentários, voltou a subir para o seu cavalo, que já descansara um bocado. Mas quando a porta do pequeno quarto que partilhava com Léonarde no priorado se fechou, declarou com os olhos virados para aqueles campos invadidos pela noite que ela tanto desejara e onde fora tão cruelmente ferida:

Acreditei naquele homem e amei-o. Mas ele fez troça de mim e representou comigo a mais indigna, a mais triste das comédias... Mas há-de vir o dia em que se arrependerá de me ter conhecido...

Sempre a falar, retirou do pescoço o fio que sustinha o anel de Philippe e contemplou-o por um instante:

O penhor da sua fidelidade! disse ela com amargura. Em seguida, estendeu o anel a Léonarde: Tomai, amanhã entregá-lo-eis ao prior desta casa para as suas obras de caridade... E, suplico-vos, não me faleis nunca mais... nunca mais desse homem!...

Segunda parte

PARIS AMEAÇADA

CAPÍTULO V

A GRANDE MISSA EM NOTRE-DAME.

Pouco depois das vésperas, os viajantes, cobertos de poeira e moídos de fadiga, desciam a longa rua Saint-Jacques em direcção ao Sena. Aquele dia de Agosto, com o seu sol velado, fora difícil de suportar, mas com a aproximação da noite um vento húmido, vindo de oeste, começou a soprar sobre Paris, acordando todos os cata-ventos que, no alto dos telhados, alinhavam as suas bandeirolas de chapa pintada e recortada.

Havia muita gente na rua. Era a hora em que os grandes colégios a Sorbonne, o colégio de Plessis, de Marmoutiers, du Man, de Clermont, etc. libertavam as turbas turbulentas dos seus estudantes, que, aos bandos ou isolados, fugindo às subtilezas escolásticas, de tinteiro à cintura e de chapéu às três pancadas, se encaminhavam para os seus alojamentos os mais sensatos ou, os mais loucos, para as tabernas do centro da cidade. Os mantos e os gibões eram mais ou menos ricos, mais ou menos limpos e mais ou menos desfiados, mas todos os olhos brilhavam com o mesmo desejo de viver. Trocavam brincadeiras e alguns até cantavam. Porém, esses risos e canções cessaram quando, de uma rua lateral, saiu uma escolta de homens de armas a cavalo enquadrando alguns polícias a pé, que levavam para o Châtelet uma meia dúzia de malandrins de mãos atadas atrás das costas.

Ouviram-se alguns gritos. Alguns daqueles malfeitores eram conhecidos dos estudantes, que não tiveram qualquer receio em lhes lançar encorajamentos e escarnecer dos soldados do preboste da cidade.

Quando chegaram ao centro, passada a Petit-Pont, a animação ainda foi maior: homens, mulheres, raparigas, burgueses e mercadores cumprimentavam-se, paravam e trocavam propósitos, ao mesmo tempo que alguns miúdos, que iam em busca de vinho, ou de mostarda, passavam agitando as suas bilhas. Entretanto e contrariamente aos estudantes, ninguém ria.

É um pouco como em Florença observou Fiora mas falta-lhe a nossa luz...

Hoje não há luz nenhuma disse Demétrios mas já vi esta cidade com um sol mais ardente do que o da Toscânia. E já passámos por imensos jardins!

Depois da porta Saint-Jacques, Paris mostrara-se em toda a sua beleza. Hortas, jardins e quintais, pertencentes a conventos ou a particulares, floresciam um pouco por toda a parte, escondendo as feridas ainda visíveis sofridas pela grande cidade durante uma guerra que durara cem anos e, sobretudo, aquando da ocupação inglesa. O Rei Carlos VII, que não gostava de Paris, não fizera grande coisa por uma cidadela que, segundo ele, o rejeitara durante demasiado tempo, mas Luís XI, se bem que preferisse os seus castelos do Loire à sua capital, compreendera que Paris merecia ser defendida e renovada. As muralhas tinham sido consolidadas, o fosso duplo reescavado e muitos edifícios reconstruídos com a ajuda de uma burguesia que o Rei enriquecia e tornava poderosa.

Apesar de considerar a capital como o centro nevrálgico do reino, Luís raramente a visitava. Desdenhando a antiga residência Saint-Pol que tanto agradara aos seus avós, ficava, então, no palácio de Tournelles, do qual os duques de Orlães tinham feito uma espécie de obra de arte com um parque, um bosque, animais selvagens, um labirinto, galerias, capelas, claustros e edifícios graciosos, ou, mais frequentemente, na residência da portaria da Bastilha Saint-Antoine, no coração das defesas da sua cidade.

Não era raro verem-se viajantes estrangeiros em Paris. Assim, Fiora e a sua escolta não despertaram grande curiosidade. Ainda por cima porque não tiveram que perguntar o caminho: Demétrios, ficara alojado, em tempos, no albergue do Grand Saint-Martin, na rua do mesmo nome, quando, com o seu jovem irmão Teodósio, tinham fugido de Bizâncio em chamas. A sua memória infalível era o guia mais seguro. Fez, até, uma vez na rue de la Cite, um ligeiro desvio para que Léonarde pudesse contemplar à vontade a catedral de Notre-Dame. Ela quis entrar para uma curta oração, à qual Fiora não se associou, preferindo esperar de pé no pequeno adro enquanto contemplava, de braços cruzados, a formidável igreja com o seu pórtico triplo, as estátuas de reis e as imensas torres gémeas, que pareciam querer impor-lhe a imagem opressiva do poder de Deus. De um Deus com o qual, mais do que nunca, se sentia revoltada. De um Deus terrível, impiedoso, que, não contente por lhe ter arrancado tudo, ainda permitira que desse o seu coração inocente a um homem suficientemente vil e perverso para ridicularizar o sacramento do casamento com o único objectivo de possuir o seu corpo e de levar triunfalmente ao seu senhor o dote real, que, àquela hora, já devia ter sido devorado pelas armas de uma conquista injusta... Fiora já não queria saber, já não queria rezar, para grande desgosto de Léonarde.