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Supremo refinamento, a casa possuía uma pequena casa de banho abundantemente fornecida de cântaros, bacias e uma grande banheira. Fiora viu-se metida, deliciada, em água quente e reencontrou a doçura perdida, desde há meses, dos maravilhosos sabonetes venezianos. Duas criadas, entusiasmadas, prodigalizaram-lhe os maiores cuidados, que diminuíram quando, depois de Fiora, tiveram de se ocupar de Léonarde. Entretanto, envolta num lençol e calçada com socos leves, Fiora saiu para o jardim, para o qual dava a estufa, para entrar em casa pela porta de trás e subir para o seu quarto e viu-se em frente de um jovem simplesmente vestido com calções, apertando ternamente contra o peito um vaso de manjericão em flor. A surpresa perante a vista inopinada de Fiora foi tão grande que deixou cair o vaso. Este estilhaçou-se sem que o jovem parecesse preocupar-se minimamente. Petrificado, parecia em êxtase, mas conseguiu articular:

Por todos os santos do paraíso!... Sois verdadeira, ou não?

Por que não havia de o ser? perguntou Fiora, divertida.

Pareceis uma aparição. Sois bela... bela como uma imagem de igreja!

Tranquiliza-te, não tenho nada de comum com os santos e honras-me muito, mas, se fosse a ti, juntava esses cacos todos e ia já replantar esse manjericão noutro vaso...

O jovem pareceu descer do céu. A visão de sonho tinha preocupações bem terrenas!

Achais?

Tenho a certeza. Além disso, gostaria que me deixasses passar. Gostaria de me ir vestir...

Eu... sim, claro. Desculpai-me acrescentou ele, desviando-se. Mas tende cuidado, para não vos ferirdes nos cacos...

Ela endereçou-lhe um sorriso e entrou em casa. Ele não se mexia, contentando-se em observá-la. Quando ela estava prestes a desaparecer, ele murmurou:

O meu nome é Florent... Ela deteve-se, surpreendida:

É um nome muito bonito. Não o esquecerei. Faz-me lembrar a minha cidade, Florença...

Aquela frase deveria ter agradado ao rapaz, mas, pelo contrário, o seu rosto vivo, onde uns olhos castanhos pareciam ocupar a maior parte da superfície sob uma trunfa da mesma cor, entristeceu-se.

Ah... Sois a dama que esperávamos? Não me apercebi e peço-vos perdão...

Perdão porquê?

Bem... Por me ter mostrado... demasiado familiar... por ter ousado...

Não ousaste nada que possa chocar uma mulher! Um cumprimento é sempre bem-vindo, se for sincero. Foste sincero?

Oh sim!

Nesse caso, obrigada. E agora, peço-te, concentra-te nesse infeliz manjericão!

Divertida com o encontro, Fiora soube mais tarde que o seu admirador fora colocado em casa de Nardi pelo pai, o cambista Gaucher lê Cauchois, para estudar a delicada arte das transacções bancárias, mas o jovem, pouco inclinado para os negócios e muito dotado para a jardinagem, dispensava a Agnelle, tanto na rua dês Lombards, como na sua propriedade de Suresne, todo o entusiasmo e forças que não tinha para com a sua escrivaninha. O calor, o corte de uma cerca, e as necessidades da cozinha explicavam o seu vestuário sumário e o vaso de manjericão:

É um rapaz muito simpático concluiu Agnolo mas muito reservado, muito fechado e só a minha mulher consegue adivinhar o que lhe vai na cabeça...

Fiora pensou que, agora, também ela conseguia... e esqueceu Florent. Achava a atmosfera de Paris bizarra. Enquanto se dirigiam para casa de Nardi, ela e os seus companheiros tinham encontrado vários grupos de soldados e, enquanto se preparava para o jantar, ouviu soar o Ângelus e, quase de imediato, todas as portas se fecharam, se bem que a noite ainda viesse longe.

Por seu lado, Demétrios também se dera conta desses factos e, ao jantar, quando estavam todos reunidos em redor de um leitão assado com um saboroso creme do famoso manjericão Florent conseguira chegar à cozinha triunfo de Agnelle e do amor conjugal, o grego interrogou o seu anfitrião:

Depois da porta de Saint-Jacques, onde nos fizeram muitas perguntas antes de nos deixarem passar, cruzámos com muitos homens armados e dame Léonarde viu, em Notre-Dame, muitas mulheres a rezar. As portas foram fechadas há pouco. Paris está ameaçada?

Uma nuvem caiu sobre o rosto amável de Agnolo. Parou, por momentos, de cortar o seu leitão e olhou para cada um dos convidados:

Lamento muito ter de falar, hoje, dessas coisas, que gostaria de deixar para depois da festa que projectámos para amanhã em vossa honra... Mas, no fim de contas, talvez seja melhor pôr-vos ao corrente da situação...

Porque se trata de uma situação... preocupante? perguntou Demétrios suavemente.

É a palavra exacta. Paris não está ameaçada de imediato, mas poderá está-lo em breve. Estamos no começo de uma nova invasão inglesa. E a famosa guerra dos Cem Anos ainda nem sequer acabou há vinte!

De facto, em caminho, ouvimos dizer que o Rei Eduardo tinha transposto a Mancha. Sabeis onde está, neste momento?

A pouco mais de trinta léguas daqui: em Péronne!

Tão perto? murmurou Fiora.

Sim, Madonna, tão perto. E não é só isso: o Temerário está com ele.

Mas continuou Demétrios pensava que o duque estava na Flandres?

Com efeito, estava em Bruges, para tentar arrancar aos Estados uma ajuda suplementar em dinheiro e homens. Graças a Deus, não conseguiu obter tudo o que queria. Os Flamengos são lentos quando se trata de guerras incessantes e o seu sangue torna-se ainda mais precioso. O duque partiu para Calais a fim de se juntar ao cunhado, o qual, é preciso dizer, se sentiu desiludido por o ver aparecer à cabeça de uma escolta de apenas

1 O Temerário casara com Margarida de Iorque, irmã de Eduardo.

cinquenta homens, quando esperava um exército que o ajudasse a invadir a França! Com perfeita má-fé, aliás, o Temerário contra-atacou, dizendo que Eduardo não tinha compreendido nada, que devia ter desembarcado na Normandia para se juntar ao duque da Bretanha, que o seu exército estava no Luxemburgo e ia anexar a Lorena. Até propôs um novo encontro: que os Ingleses entrassem em Champagne e ele próprio, vindo da Lorena, juntar-se-ia a eles em Reims, onde coroariam Eduardo Rei de França!

Que loucura!

Na verdade, não, mas seria preciso que o Rei Luís não existisse. E o Rei Luís, para além do seu grande exército, possui uma coisa que nenhum dos seus inimigos possui: o génio. É com esse génio que nós, as gentes de Paris, contamos, mais do que as armas, para vencer a coligação. Ele está entre nós e o exército inglês, e é muito capaz de embrulhar o Temerário e Eduardo...

Onde está ele, neste momento? perguntou Fiora.

Em Compiègne, onde estabeleceu o seu quartel-general.

E... o exército é grande?

Mais ou menos cinquenta mil homens, quase o dobro do exército inglês, mas o Rei é muito cioso do sangue dos seus soldados. Prefere pagar, enganar e engodar, a dar batalha...

É cobarde, então? perguntou desdenhosamente Fiora.

De modo nenhum. Já deu provas disso, podeis crer. É claro que dará batalha se for a única hipótese de defender Paris, mas espera não chegar a isso.

De qualquer maneira, se o seu exército é mais forte...

Não o será contra os Ingleses aliados aos Borgonheses... e à Bretanha, porque o duque bretão, se vir o Rei em má posição, apunhala-o pelas costas. Sempre foi amigo dos Ingleses...