Sempre a falar, Agnolo ia comendo o seu leitão e, como todos estavam servidos, o som dos maxilares substituiu, por momentos, o da conversação. Tal como os outros, Fiora comia com prazer, feliz por reencontrar os sabores do seu país, mas o seu apetite terminou pouco depois. A jovem pousou a faca, limpou os dedos e, no silêncio, perguntou:
É longe, Compiègne?
Um pouco mais de vinte léguas respondeu Agnolo.
Ah!...
A jovem não disse mais nada, mas Demétrios compreendeu que ela fazia contas de cabeça. Trinta menos vinte são dez e dez léguas não são grande coisa para um bom cavalo. Para prevenir uma nova desilusão, continuou, virando-se para o dono da casa:
Dizíeis que o Temerário só tinha cinquenta homens quando chegou a Calais?
Sim. O grosso do exército ficou nos limites da Lorena e do Luxemburgo às ordens do marechal do Luxemburgo e do conde de Campobasso, um condottiere napolitano transfuga do exército da Lorena e que está com o duque Carlos há dois anos...
Transfuga... que doce eufemismo! Isso quer dizer traidor? perguntou Esteban com um desprezo que fez sorrir Fiora.
Mais ou menos, mas não exactamente. Vós, que vindes da Toscânia, devíeis saber que um condottiere está mais ligado ao dinheiro do que à lealdade... Desde que lhe paguem, marcha!
Levantaram-se da mesa e Agnolo tomou Demétrios pelo braço:
Vós desejais, creio, juntar-vos rapidamente ao Rei Luís!
Sem dúvida, se bem que ele esteja, talvez, demasiado ocupado...
Para receber um médico tão bom? Posso dizer-vos uma coisa: ele espera-vos impacientemente.
Ele está à minha espera?
Claro. Vós fostes anunciado.
Nesse caso, partimos amanhã exclamou Fiora, subitamente corada.
O lugar de uma jovem dama, ou de uma dama, não é num acampamento disse Agnelle. Sentir-me-ia tão feliz se ficásseis aqui algum tempo! Apenas o suficiente para ver em que param as modas. O nosso Rei é muito bem capaz de evitar a guerra, mas, para já, os soldados são muitos...
Mas é que... nós nunca nos separámos!
1 Chefe de mercenários italianos.
A separação não será longa. Compiègne não fica longe. Além disso, talvez o Rei não fique muito contente por ver chegar uma mulher...
Duas mulheres! rectificou Léonarde. Eu nunca me separo de donna Fiora...
Agnelle tem razão disse o marido desta vindo em seu socorro. As únicas mulheres que se encontram num acampamento são as prostitutas que os exércitos arrastam sempre consigo. Ficareis melhor aqui...
Fiora ficou impassíveclass="underline" não estava convencida. Aliás, como dizer àquela boa gente que concluíra com Demétrios um pacto de sangue que visava matar o grande duque do Ocidente? Em Compiègne, os dois justiceiros estariam próximos do seu objectivo e aquelas notícias reforçavam a decisão da jovem. Matar o Temerário seria muito mais do que uma vingança, seria salvar Paris, salvar a França do grande perigo da junção dos exércitos inglês e borgonhês. O pensamento de encontrar, ao mesmo tempo, Philippe, que, talvez, acompanhasse o seu duque, só a aflorou e repeliu-o como importuno, irada, já que o ódio, assim como a paixão, são maus conselheiros. Fiora acreditava, ingenuamente, que odiava Philippe, quase tanto como o amara...
Na manhã seguinte a uma noite pouco repousante, já que quase não dormira, Fiora, ao levantar-se, viu o quarto vazio, mas lembrou-se que Léonarde tinha, na véspera, perguntado à sua anfitriã a hora da primeira missa na igreja vizinha. A jovem levantou-se e fez uma toilette rápida, tendo o banho da véspera permitido umas abluções mais curtas. Hesitava no que vestir quando ouviu gritos e palavras levianas e dirigiu-se à janela. O que viu espantou-a: um grupo de homens conduzia na direcção da casa uma Léonarde que gemia de maneira a destroçar um coração. Fiora vestiu o primeiro vestido que encontrou e precipitou-se pela escada abaixo. Chegou a tempo de ver o cortejo transpor a soleira da casa.
Não tenhais medo! gritou-lhe Agnelle, que segurava a cabeça de Léonarde ela não está em perigo, mas creio que tem uma perna partida.
Como é que isso aconteceu?
De maneira estúpida, como sempre em casos semelhantes: ao sair da igreja, escorregou no pavimento e a perna foi de encontro à roda de uma carroça. Está cheia de dores.
A pobre Léonarde estava tão branca como uma folha de papel e grossas lágrimas corriam-lhe pelo rosto, sem que as conseguisse conter. A velha solteirona agarrou-se desesperadamente à mão de Demétrios, que, ocupado a afivelar as suas sacolas, tinha acorrido ao ouvir o burburinho:
Não me ides cortar a perna, pois não? suplicou ela. Não ides fazer de mim uma inválida?...
Acalmai-vos, peço-vos. Ainda não chegámos a esse extremo... Primeiro, tenho de examinar o vosso pé.
Mas, não íeis partir?
Parto mais tarde, mais nada! O Rei espera-me já há muito tempo. Um pouco mais, um pouco menos... Não pensáveis que vos ia deixar nesse estado?
Transportaram Léonarde para a cama que a solteirona partilhava com Fiora. Demétrios lançou a esta um olhar rápido:
Tu vais ajudar-me. Primeiro, é preciso descalçá-la...
O pé formava, com a perna, um ângulo anormal, o que era, aparentemente, muito doloroso. Tirar o sapato foi relativamente fácil, mas foi preciso cortar a meia cheia de sangue, através da qual se via a pequena lasca de um osso. A ferida era pequena e sangrava pouco:
O pé não está deslocado diagnosticou o médico depois de ter passado os dedos ágeis pelos ossos mas há uma fractura exposta. E que é muito dolorosa. Podeis, dame Agnelle, instalar aqui uma mesa coberta com um pano...
Certamente. Tudo o que quiserdes... Mandarei também trazer talas de madeira e faixas de linho fino...
Por Deus, é uma bênção estar doente em vossa casa disse Demétrios com um sorriso porque sabeis mais do que muitos dos nossos estudantes. Tende, também, a amabilidade de acrescentar uma bacia cheia de farinha, água... e o meu criado, se o encontrardes. Deve estar na cavalariça...
Agnelle desapareceu como uma pequena nuvem dourada para regressar pouco depois com metade das criadas e Esteban, todos carregados com talas, pranchas e uma quantidade de objectos úteis e variados. Enquanto isso, o grego encontrara na sua bagagem tudo aquilo de que tinha necessidade. Graças à generosidade principesca do Magnífico e às riquezas do seu jardim de Fiesole, possuía uma provisão de farmacopeia ambulante que faria inveja ao velho Hotel-Dieu parisiense, cujas muralhas veneráveis se elevavam, cinzentas e melancólicas, junto a Notre-Dame.
A ferida, cuja mão trémula agarrava a de Fiora, foi estendida sobre a mesa com a cabeça apoiada em almofadas. A velha solteirona tremia tanto de medo como de dor, a despeito das palavras doces e encorajadoras que a jovem lhe prodigalizava e bebeu, reconhecida, as duas colheres de opiato com mel que Demétrios lhe deu e que lhe apaziguaram, um pouco, a dor. Mas quando o médico, com um gesto seco e preciso, lhe repôs o pé no devido lugar, lançou um grito agudo e desmaiou...
Foi o melhor que lhe podia ter acontecido disse este. Aproveitemos!
Enquanto duas sólidas criadas seguravam Léonarde pelos ombros e Esteban se deitava praticamente sobre o seu corpo, Demétrios, depois de ter limpo a ferida, esticou firmemente a perna quebrada até o osso ter retomado o seu lugar... Após o que, com as talas e as faixas de linho, que mergulhara na farinha mergulhada em água, confeccionou um aparelho que manteria imóvel o membro lesado, na ponta do qual prendeu uma grande pedra depois de a infortunada Léonarde ter sido transportada para a sua cama. Durante toda a operação, a pobre mulher acordou e desmaiou duas vezes mas depois de tudo terminado caiu num sono profundo após ter absorvido uma nova dose de opiato...
Não podeis continuar a partilhar esta cama disse Agnelle a Fiora. Vou mandar colocar outra...