Dai-lhe o meu quarto disse Demétrios. Eu durmo na cavalariça com o meu criado. Por uma noite...
Continuas a pensar em ir? perguntou Fiora, alarmada com a ideia de se separar daquele sólido companheiro...
Se a noite correr bem, não tenho razão nenhuma para ficar. É preciso deixar a natureza seguir o seu curso.
E quanto tempo durará esse curso?
1 Hospital
Mais ou menos seis semanas. Mas, descansa acrescentou ele ao ver o fino rosto entristecer-se eu regresso antes. Depois de o tratar, o Rei, deixará, certamente, que eu parta.
Não conteis com isso! lançou Agnolo, que regressava nesse momento de casa de um cliente. Se agradardes ao nosso sire, ele não vos deixará partir com essa facilidade...
Eu explico-lhe. Mas, a propósito, mestre Agnolo, vós pareceis muito a par dos seus hábitos, assim como da sua política?
... e vós estais surpreendido, não é verdade, por um simples mercador, ainda por cima estrangeiro, vos dizer coisas que seriam mais próprias de um próximo do monarca?
Em Florença não me surpreenderia muito, onde todos estão, mais ou menos, ao corrente dos assuntos do Estado, mas num reino que parece governado por mão de mestre...
E que o é, podeis estar certo. Mas, demos alguns passos no jardim, estaremos tranquilos e será mais agradável...
Ao passarem pela cozinha, o negociante ordenou a uma criada que lhes levasse vinho fresco ao caramanchão de glicínias e madressilva que era um dos atractivos do jardim, sendo outro os maciços de roseiras, aos quais Florent prodigalizava cuidados de pai. Este estava, justamente, a cortar flores murchas quando os dois homens penetraram no seu território.
Ainda acabo por te mandar para a minha propriedade de Suresnes suspirou Nardi. Passas mais tempo neste jardim do que diante da tua escrivaninha...
Isso, meu senhor, é porque gosto mais de flores do que de escrituras...
E que dirá o teu pai? Ele não te mandou para minha casa para que te tornes jardineiro...
Eu aprendo o suficiente durante o Inverno. E sinto-me tão feliz assim...
Com um gesto afectuoso, Agnolo desgrenhou os cabelos do rapaz, que não eram muito disciplinados:
Veremos isso mais tarde. Por agora, faz-me o favor de ir fazer os teus deveres. Este senhor e eu temos de conversar.
Florent obedeceu imediatamente e os dois homens começaram a caminhar lentamente ao longo dos carreiros ensaibrados, onde não crescia a menor erva daninha...
Contrariamente ao pai, o defunto Rei Carlos VII, que Deus tenha a sua alma, o nosso sire Luís faz-se acompanhar dos seus vassalos habituais e uma parte do seu conselho são homens como eu, burgueses, que lhe transmitem a imagem verídica do que são os negócios comerciais do país e do que se passa nas nossas cidades. Eu sou um dos primeiros entre os mercadores estrangeiros residentes em Paris. Herdei, também, um pouco da amizade que o Rei concedia ao nosso pobre Francesco Beltrami. Sua Majestade conhecia-o bem e, no plano bancário, Beltrami serviu o Rei de França em proporções mais modestas do que os Médicis, sem dúvida, mas ele nunca se arrependeu. Nem eu.
O vinho chegou, trazido por Jeanneton, a mais jovem das criadas da casa. A jovem encheu duas taças, que ofereceu a cada um dos homens antes de desaparecer. O calor começava a fazer-se sentir e as abelhas zumbiam na madressilva. Mas, sob o caramanchão, estava mais fresco... Agnolo bebeu uma grande golada, enxugou a boca ao guardanapo pousado no tabuleiro e continuou:
Eu nunca cheguei a conselheiro como o meu compadre Jean de Paris, mas algumas missões são-me confiadas, de acordo com as deslocações que os meus negócios implicam. Além disso, tive a honra de acompanhar messire Louis de Marrazin e o meu amigo Jean de Paris quando, o ano passado, se encontraram com o senhor duque Renato II da Lorena para reatar com ele o antigo tratado de amizade que o duque da Borgonha o obrigara a dissolver...
Obrigara? Como é possível?
O duque Renato é jovem vinte e quatro anos e muito inexperiente. O Temerário chama-lhe, desdenhosamente, ”o menino”, mas é um príncipe amável e muito corajoso, que não estava, aliás, destinado a governar a Lorena. Só a morte prematura do seu primo, o duque Nicolas, há três anos, lhe outorgou a coroa e o Rei Luís assinou de imediato com ele um tratado de amizade que o Temerário, evidentemente, não suportou...
Que meios empregou ele para obrigar o jovem duque a renegar a aliança?
Oh, foi muito fácil, com um rapaz recto e honesto como Renato. Ferry de Vaudémont, o seu pai, e mesmo Yolande d’Anjou, a sua mãe, deviam muito ao duque Filipe, pai do Temerário.
Carlos relembrou a Renato essa velha confiança e Renato deixou-se cativar. Mas rapidamente se apercebeu do que valia a aliança do grande duque do Ocidente. Teve que ceder ao seu perigoso aliado quatro das suas cidades: Épinal, Darney, Preny c Neufchâteau, com o poder de guarnição e de nomear os governadores. Foi colocar a Lorena sob a pata do borgonhês e Deus sabe como ela é pesada! As cidades gritaram aos céus, sem poderem fazer fosse o que fosse para se libertarem. Quando, após o cerco de Neuss, que o Temerário não conseguiu concretizar, as suas tropas marcharam sobre o Luxemburgo e sobre Thionville, o duque Renato aliou-se aos cantões suíços que tinham, também eles, queixas e que, com os Alsacianos, libertados há pouco tempo do Landvogt Pierre de Hagenbach, favorito do Temerário, entraram no Franco Condado. Renato II estava pronto para cair nas mãos do Rei Luís e ninguém melhor do que este para colher os frutos semeados por outros...
Estou a ver. E o que é que acontece, a seguir?
Isso não sei. Talvez vós possais saber algo no acampamento de Compiègne?
Esperava que me conduzísseis lá. Seríeis, para um estrangeiro como eu, uma boa introdução...
Não tereis necessidade. Quanto à viagem, ceder-vos-ei o jovem Florent. Ele conhece a região na perfeição e leva-vos a bom porto. Eu tenho que ficar, porque amanhã, na Maison aux Piliers, messire Robert d’Estouteville, preboste de Paris, reúne os chefes das corporações e os principais burgueses para deliberar a ajuda que pode conceder caso a nossa cidade seja cercada...
Um conselho de guerra? A situação será mais grave do que me destes a entender?
De maneira nenhuma e não vos escondi nada, pelo menos pelo que sei, mas há um velho ditado latino que diz: Si vispacempara bellum Se queres a paz, prepara a guerra. É exactamente isso que vamos fazer.
Agnolo Nardi e Demétrios permaneceram ainda longos minutos debaixo do caramanchão bebendo o seu vinho. Minutos preciosos, durante os quais homens vindos de horizontes diferentes se entendem e compreendem e a existência parece mais preciosa. Tudo estava calmo na casa da rua dês Lombards.
Agnelle, ajudada por Fiora, arrumava a roupa recentemente passada, enquanto Léonarde dormia, a dor submersa no sono. Esteban fazia o mesmo na palha da cavalariça e nos gabinetes do negociante cada um fazia o seu trabalho: as penas de pato rangiam, quase todas ao mesmo tempo, sobre os pergaminhos. Só, Florent sonhava. Sentado num degrau da escada, olhava para Fiora, que, sempre a falar, passava à sua anfitriã pilhas de toalhas e guardanapos, que esta guardava nas arcas da grande sala. Vestida com um simples vestido de linho branco bordado com uma delgada grinalda de folhas verdes, que Chrétiennotte lhe confeccionara em Dijon e a massa lustrosa dos cabelos negros entrançados caindo sobre um ombro, parecia-se mais do que nunca com uma princesa de um qualquer romance medieval e o jovem devorava-a com os olhos. Sem que ela, aliás, disso se apercebesse. Foi Agnelle que reparou no olhar guloso do rapaz e mostrou-se irritada:
Não tens mais nada que fazer senão ficar aí sentado embasbacado? Pensava que estavas no jardim?
Florent levantou-se com uma má vontade evidente e resmungou:
Mestre Agnolo está lá com o grande homem negro e mandou-me ir para dentro.