Sem dúvida para que fosses trabalhar! Vai lavar as mãos, penteia-te e volta para a escrivaninha. Começo a arrepender-me de te ter entregado o jardim...
Florent partiu na direcção da cozinha, virando-se um pouco para olhar durante mais algum tempo para aquela a quem chamava, interiormente, a sua ”bela dama”. Agnelle abanou a cabeça, encolheu os ombros com uma certa comiseração e regressou à sua tarefa:
Este rapaz está louco por vós, minha querida. Receio bem que não preste para mais nada.
Ele esquece-me assim que deixar de me ver! Infelizmente, a perna da minha querida Léonarde vai-nos reter aqui ainda mais algum tempo, o que é um incómodo para vós.
Incómodo? Doce Jesus! É um verdadeiro prazer e eu sinto-me encantada por poder gozar a vossa presença. Sem este acidente deplorável partiríeis esta manhã, não é verdade?
- Sim. Messire Lascaris é-me muito querido e nunca nos separamos. Por assim dizer tomou o lugar do meu querido pai, cuja recordação nunca me abandona.
Certamente, mas não seria melhor um marido para preencher esse vazio? Tão jovem, tão bela, não fostes feita para essas jornadas tão grandes. Algum senhor conseguirá, um dia, conquistar o vosso coração?...
Não creio e, aliás, não o desejo. O amor provoca mais feridas do que alegria. Perguntai ao jovem Florent.
Estou com vontade de o mandar para Suresnes, para lhe arejar as ideias. Vou falar nisso ao meu marido, esta noite...
Mas não teve necessidade disso, porque, como o estado de Léonarde era satisfatório, Demétrios e Esteban despediram-se da casa Nardi no dia seguinte de manhã. E Florent foi encarregado de os conduzir a Compiègne.
Não sem pena! Quando chegou a hora da partida, o rapaz exibia uns olhos vermelhos de insónia, mais do que de lágrimas. Enquanto montava na sua mula, envolvia Fiora com um olhar que metia dó... de que a jovem nem sequer suspeitava, ocupada em tentar analisar os seus próprios sentimentos. Uma coisa era certa: sentia o coração destroçado por ver Demétrios partir sem ela. Sem dúvida porque ia aproximar-se daquele duque da Borgonha cuja marca pesara tanto na sua vida, mas também porque, ao longo dos dias, se ligara mais do que pensara àquele homem sábio, silencioso e pouco comunicativo, que aparecera a seu lado quando desesperava de qualquer socorro humano.
A ideia de que ele prosseguisse a sua vingança sozinho nem sequer lhe passou pela cabeça. Sabia que entrava numa certa parte dos desígnios do grego, mas também não ignorava que, por vezes, o destino prega partidas, apesar dos planos mais bem concebidos e mais solidamente estabelecidos. Teria que esperar que Demétrios regressasse o mais depressa possível.
Léonarde, por seu lado, estava desolada por ser a origem daquela separação, mas achava, secretamente, que a vontade de Deus tinha pesado: rezava-lhe tanto para que desviasse o seu ”cordeirinho” daquele projecto homicida, que poderia enviá-la para as mãos do carrasco.
Devíeis ter partido sem mim! suspirou ela com uma certa hipocrisia...
E abandonar-vos aqui, sozinha, numa cidade e numa casa que não conheceis? Por mais encantadores que a senhora Agnelle e o marido sejam, não deixam de ser estrangeiros. Portanto, não vos atormenteis e pensai apenas em sarar! Onde poderíeis ser mais bem tratada do que aqui?
De facto, Léonarde estava, sobretudo, vexada por se ter ferido ao sair de uma igreja. Ainda por cima porque a igreja em questão não lhe inspirara uma confiança absoluta. Com efeito, pudera constatar, como explicara, corando, a Fiora, que as raparigas públicas pareciam fazer de Saint-Merri ponto de encontro, que era, mais ou menos, a sua paróquia. Fora o suficiente para que a velha solteirona ficasse com as maiores suspeitas acerca de uma santa que tolerava uma tal promiscuidade.
Agnelle, a quem Fiora contou o caso, achou muita piada:
No entanto, não é por culpa dos curas dessa pobre igreja, que ao longo dos séculos se fartaram de protestar com sortes diversas. Mas, que quereis, as senhoras prostitutas formam, nos nossos dias, uma verdadeira corporação, reconhecida, que tem as suas leis, os seus juizes, os seus estatutos, os seus privilégios e que até, na festa da santa padroeira, Santa Madalena, no dia 22 de Julho, tem direito a procissão. E uma bela procissão, acreditai, com ricos pendões, nuvens de incenso e grandes iluminações...
Mas, porquê Saint-Merri?
Simples questão de vizinhança: duas das nove ruas de Paris, onde as prostitutas têm direito a fazer comércio, a rua Brisemiche e a Court-Robert, são contíguas à igreja. Isso impedir-vos-ia de ir lá ouvir missa no domingo? acrescentou ela, mais séria.
Fiora quase respondeu que perdera o hábito dos seus deveres dominicais, mas temeu, por excesso de franqueza, melindrar a sua amável anfitriã. Por outro lado, ao recordar-se da sua passagem pela casa de Pippa, sentiu um certo constrangimento. Que diria aquela doce, luzidia e generosa Agnelle se soubesse daquele episódio aviltante que sujara a vida daquela que ela tratava como uma irmã mais nova? Assim, Fiora apressou-se a tranquilizá-la: iria ouvir missa onde Agnelle lhe agradasse...
Entretanto, para se certificar que não melindraria o pudor daquela que era, sem dúvida, uma jovem nobre e pura, a esposa de Agnolo decidiu que iriam ouvir missa a Notre-Dame de Paris e Florent, regressado na véspera de Compiègne, onde se demorara apenas o tempo suficiente para depositar Demétrios e Esteban na residência do Rei, recebeu ordem de preparar as mulas e acompanhar as damas. Com o entusiasmo que se imagina!
Na manhã de domingo do dia 15 de Agosto puseram-se a caminho sob um céu sem nuvens que as andorinhas, rápidas e quase invisíveis de tão alto que voavam, atravessavam como flechas negras. O som dos sinos, anunciando os ofícios divinos, substituíra a algazarra da grande cidade, onde durante a semana se acordava de manhã cedo ao som dos estalidos que os comerciantes faziam ao abrir as persianas das suas quitandas e dos rapazes das estufas anunciando que os banhos estavam quentes... Não havia o inevitável ajuntamento provocado pela estreiteza e sinuosidade das ruas. As vozes frescas e poderosas dos vendedores de La Halle, que, de cabazes debaixo do braço, ou escoltados por um burro, gritavam aos quatro ventos a manteiga de Vanves, os agriões de Orleães, o cebolinho de Étampes, os alhos de Gandelu, as cebolas de Bourgueil, os ovos de Beauce, os queijos de Brie ou de Champagne tinham-se, também elas calado. Só encontraram gente vestida com os seus melhores fatos, com a qual trocavam uma saudação ou algumas palavras. Algumas pessoas espantavam-se por ver Agnelle sem o seu Agnolo, que, como cristão escrupuloso, nunca faltava à missa de domingo e foi preciso repetir vezes sem conta que o senhor Nardi estava doente, arriscando-se a chegar atrasadas.
Não se poderá faltar a uma missa sem que tenha de se explicar a razão à cidade inteira? disse Agnelle um pouco irritada. E imagino que vai acontecer o mesmo quando descobrirem que vamos a Notre-Dame em vez de Saint-Merri!
Estais a ver? Não devíeis ter mudado os vossos hábitos por minha causa...
Mas eu vou tantas vezes à catedral! É tão bela! Além disso, hoje é o dia da Assunção!
Fiora, que se recusara a acompanhar Léonarde, no dia da chegada, na sua visita de boas-vindas, arrependeu-se ao penetrar na imensa nave resplandecente de centenas de velas. Havia muita gente em redor do altar-mor, por trás do qual se escalonavam os relicários de ouro de numerosos santos, mas Agnelle e a sua companheira conseguiram arranjar lugar nas primeiras filas de uma multidão à qual a magia dos vitrais, juntamente com o brilho do sol, dava uma cor diversa. E os olhos maravilhados da florentina, apesar de habituados à beleza dos edifícios sagrados, iam das altas ogivas resplandecentes à grande rosácea cintilante sobre o pórtico da entrada.
Todo o clérigo estava no coro, vestido de vermelho e ouro, rodeando a alta cadeira onde estava sentado um hóspede muito especiaclass="underline" o bondoso cardeal de Bourbon, primo, do Rei e primaz da Gália, que expunha as suas vestes púrpuras sob o pálio decorado com as suas armas encimadas por um chapéu cardinalício. Naquele esplendor, o bispo de Paris parecia insignificante...