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Temos sorte sussurrou Agnelle. Sua Eminência raramente está em Paris no Verão. Nesta época está, geralmente, na sua cidade arquiepiscopal de Lyon, mas o Rei deve tê-lo enviado para tranquilizar os parisienses. Com efeito, ele está ligado às duas partes: o seu irmão Pierre de Beaujeu casou há dois anos com a filha mais velha do Rei e, por parte da mãe, Agnès de Bourgogne, está ligado ao Temerário. O que, convenhamos, não lhe deve facilitar a vida...

Chhhh! sussurrou alguém e Agnelle, confusa, escondeu o rosto nas mãos, afundando-se na oração.

Aliás, o cardeal tinha-se levantado e, com a sua voz indolente de grande senhor desiludido endereçou algumas palavras ao povo de Paris, exortando-o a manter a confiança no Senhor, na sabedoria do seu soberano e na solidez das suas muralhas. Tranquilizou-o também com as suas orações e apoio em tudo. Após o que, no meio de espessas nuvens de incenso, começou a missa com o Veni Creator... Mas Fiora já não via nada: nem a imponente silhueta de monsenhor de Bourbon, nem as alvas de renda, nem as casulas douradas que se moviam por entre o ligeiro nevoeiro ascendente dos incensórios de bronze. O que

1 É só no reinado de Luís XIV que Paris se torna arcebispado. Até então dependia do arcebispado de Sens.

ela via era, ajoelhado num dos genuflexórios do capítulo, num hábito branco de monge, meio encoberto por um escapulário negro, um crânio em forma de cúpula, cor de azeitona, que brilhava, e duas grandes mãos magras, dissimulando um rosto que ela temia reconhecer... O coração começou a bater-lhe no peito, cada vez mais depressa. Tentou tranquilizar-se, persuadir-se de que se enganava, que o que estava a ver era impossível... Mas, subitamente, o monge deixou cair as mãos e virou para o altar o grande nariz, a boca cerrada e as pesadas pálpebras de frei Inácio Ortega...

Uma vaga náusea revolveu o estômago da jovem, cujos olhos se enublaram por um instante, mas, à custa de um violento esforço, ela conseguiu superar o mal-estar. Se desmaiasse, o burburinho criado atrairia as atenções e, certamente, a do seu inimigo. Contentou-se em puxar mais para baixo o véu que lhe cobria a bela coifa de seda, presente de Agnelle nessa manhã.

Naturalmente, não ouviu nem viu nada da grande missa que se desenrolava perante os seus olhos. As admiráveis vozes do coro não representavam para ela mais do que um sussurro de tempestade e no seu espírito havia apenas um pensamento: que fazia em Notre-Dame, no coração da França, o dominicano espanhol que o Papa Sisto IV enviara a Florença para tentar minar a força dos Médícis? Pelo que sabia, frei Inácio, juntamente com as suas maquinações frustradas, fora conduzido até meio caminho de Roma pelos soldados do Magnífico e, no entanto, ali estava ele, a poucos passos daquela que perseguira tão cruelmente. Porquê? Com que fim? Estaria na sua pista?

Fiora abanou a cabeça como que para afastar aquele pensamento insistente. Não havia qualquer razão para que o monge a tivesse seguido até Paris, mas se ele ali estava, não era, certamente, em peregrinação, ou numa qualquer obra piedosa... No entanto, a jovem estremeceu quando os olhos de serpente, virando-se para os fiéis, passaram pelo local onde ela se encontrava.

Depois de a Elevação ter feito curvar as cabeças sob o esplendor da hóstia branca, Fiora tocou no cotovelo da sua amiga.

Não façais qualquer movimento, Agnelle, mas eu vou sair... o mais discretamente possível...

Não estais bem?

Não muito. Preciso de ar. Deve ser deste incenso todo...

Quereis que saiamos juntas?

Não... peço-vos: ficai até ao fim. Eu vou ter com Florent. Se me sentir melhor, volto...

Era preciso, com efeito, escapar, a qualquer preço, ao perigo que a Comunhão a faria correr para a qual, aliás, não estava preparada, já que não se confessava há meses. Quer se aproximasse do altar para receber o sacramento, quer permanecesse no seu lugar, encontrando-se então isolada, arriscava-se a ser vista. Frei Inácio tinha uma vista penetrante e, de qualquer maneira, teria que erguer o véu para receber a hóstia. Mais valia sair rapidamente...

Aproveitando o facto de toda a gente estar de pé, a jovem deslizou pelo meio da multidão com um lenço encostado à boca, como alguém que se sente mal, e todos lhe deram passagem. Ao transpor as portas vermelhas ornamentadas com grandes volutas de ferro forjado, sentiu o coração descontrair-se e aspirou a plenos pulmões o ar doce da manhã. Mas os mendigos, que se encontravam sempre nos degraus da catedral em dias de grandes cerimónias, acorreram e ela teve a maior das dificuldades para se desembaraçar deles. Mas com gentileza, porque se recordava de Bernardino, o mendigo que a acolhera uma terrível noite num palácio inacabado. De repente, teve vontade de pronunciar a palavra que era compreendida em todos os países latinos: ”Mendid!” mas era uma palavra de passe, uma espécie de pedido de socorro, que não tinha o direito de empregar.

Com a bolsa vazia, foi juntar-se a Florent, que devia estar à espera das damas junto das mulas, perto de uma velha residência. Com efeito, avistou-o e, de repente, foi invadida por uma grande alegria: Florent não estava sentado, antes de pé e a conversar com Esteban.

A jovem correu para o castelhano como para um amigo perdido, sem se preocupar com o equilíbrio do seu penteado:

Esteban! Estás cá?... Nesse caso, Demétrios já regressou?

Não, ficou lá. Eu regressei para escoltar um senhor conselheiro do Rei que vos quer falar. Mas, que vos aconteceu, donna Fiora? Pareceis perturbada...

Não é nada.

E, puxando Esteban de lado sem se preocupar com a expressão de desagrado de Florent, a jovem explicou-lhe rapidamente o que acabava de lhe acontecer. O escudeiro-secretário franziu as espessas sobrancelhas:

Estais certa de que não vos enganastes?

Certíssima, Esteban, não tenhas dúvidas. Era ele! Como poderia esquecer a sua figura? Mas, que está ele aqui a fazer? Não deve saber que nós estamos em Paris?

Se quereis a minha opinião, acho que devemos estar muito longe do seu espírito, o que não impede que não tentemos saber o que trama. Juraria que está interessado em alguém e que, se bem o conhecemos, não é por caridade cristã...

Que poderemos fazer?

Vós, nada. Esse velho demónio gostaria muito de vos pôr as garras em cima. Mas eu vou saber. Onde é que ele está, na igreja?

A jovem explicou-lhe. Esteban lançou-se na direcção da catedral e, sem deixar de correr, virou-se:

Quando a dama Agnelle se juntar a vós, regressai a casa! Não espereis por mim!...

Fiora viu-o atravessar os grupos de mendigos e saltimbancos que se preparavam para a saída da missa e desaparecer. Foi ter com Florent, que, com um ar ofendido, fazia de conta que verificava os arreios vermelhos e dourados das mulas, mas a jovem estava demasiado aliviada para lhe prestar qualquer atenção. Sentou-se no apeadeiro de cavalos, ajustou a coifa à qual não estava habituada e cujos alfinetes lhe repuxavam os cabelos e pegou no lenço para se abanar. Ainda mais vexado por tanta indiferença, Florent resmungou, de olhar sombrio:

Vós não me prestais nenhuma atenção, pois não?

Porquê? Devia prestar?

Não... não, tendes razão. Não mereço que vos interesseis pela minha sorte. Que sou eu para vós? Nada... menos que nada... Poderia morrer aos vossos pés, que nem se quer me concederíeis um olhar...

O som dos sinos, que anunciavam a saída da missa, cobriu-lhe as palavras. Ocupada com as suas próprias preocupações, Fiora mal os ouviu. Sem um olhar para o jovem, que rangia os dentes, levantou-se para ir ter com Agnelle, cujo véu cor de mel acabara de avistar...