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CAPÍTULO VI

O SENHOR DE ARGENTON

Os sinos continuavam a tocar para grande glória da Virgem Maria quando Agnelle e Fiora entraram na sala onde a mesa acabara de ser posta, Agnolo, aparentemente em excelente estado, conversava com um visitante, ambos sentados num banco cheio de almofadas e bebendo vinho cuja frescura embaciava as taças de estanho. Quando as damas entraram, levantaram-se e Fiora viu que o desconhecido era um homem jovem ainda não tinha, certamente, trinta anos de estatura média mas elegante, metido numa túnica violeta, cujas mangas largas, rendadas, caíam até aos joelhos e nuns calções justos, de cores harmoniosas, revelando umas pernas elegantes. Do peito pendia-lhe uma grande corrente de ouro. As botas, grandes e macias, estavam cheias de poeira, como é natural após uma longa cavalgada. Sobre tudo aquilo erguia-se um rosto bondoso de olhos azuis alongados, de boca carnuda, bem desenhada e maliciosa e de nariz comprido, cujas narinas, sensíveis, pareciam animadas de vida própria: umas rugas profundas, partindo das asas, iam quase até aos maxilares. Os cabelos, de um louro-escuro, e muito espessos, enquadravam aquela figura, que respirava graça e inteligência. O desconhecido saudou as duas mulheres com uma segurança senhorial, mas demorando-se um pouco mais em Fiora, que fixou por um instante, de sobrancelhas erguidas, sem sequer se dar ao trabalho de dissimular a admiração.

Donna Fiora Beltrami, suponho? perguntou ele com um meio sorriso.

A sua voz, bem timbrada, mas suave e acariciadora, poderia pertencer a um cantor e era evidente que o desconhecido sabia fazer uso dela com encanto...

Não vos enganais, messire disse Agnolo e esta é a minha mulher, donna Agnelle. Permiti que vos apresente aelas: este, queridas senhoras, é o conselheiro mais escutado pelo nosso rei, Messire Philippe de Commynes, senhor de Argenton, que nos veio ver de propósito para falar com donna Fiora.

Comigo? E da parte de quem, meu Deus?

Mas... da parte do Rei, madonna!

A sério? E quem sou eu, para que um grande príncipe se lembre de mim?

A ligeira troça não escapou ao senhor de Argenton. O seu sorriso acentuou-se, ao mesmo tempo que as suas pálpebras se semicerravam ligeiramente:

A modéstia é uma virtude que convém, sobretudo, às mulheres feias. Com essa beleza, madonna, isso é tempo perdido e, pior ainda, é uma hipocrisia. Que o nosso sire se interesse por vós não tem nada de extraordinário. Ainda por cima porque guarda as melhores recordações do vosso defunto pai. Mas, talvez possamos falar depois da refeição? Perdoai-me, minha senhora acrescentou ele virando-se para Agnelle mas morro de fome. Acho que era capaz de comer um cavalo...

O riso da jovem derramou-se como um jacto de água límpida:

Não temos cavalo na ementa, messire, mas creio que a nossa refeição, se bem que modesta, satisfará o vosso apetite. Olá, pequenas! acrescentou ela batendo as palmas tragam bacias e toalhas e tratem de nos servir rapidamente!

Como se não esperassem senão aquele sinal, três jovens criadas apareceram com bacias cheias de água perfumada, nas quais os convivas lavaram as mãos que enxugaram em toalhas finas antes de passarem à mesa. Em seguida, as criadas desapareceram para dar lugar a criados transportando massas, empadas e ”charcutarias” muito afamadas, porque as bolotas dos carvalhos alimentavam os numerosos porcos que constituíam o primeiro serviço. Em seguida vieram os peixes, carpas e salmões arranjados de forma diversa, depois as aves e um quarto de boi assado, tudo acompanhado de funcho, cenouras, couves e rábanos; por fim, os queijos e os frutos, cerejas, ameixas e alguma pastelaria. Tudo regado com vinhos de França e de Itália, porque Agnolo possuía uma cave bem fornecida, da qual se orgulhava. Não parava de encher a taça do seu convidado, indicando-lhe a colheita e o ano e o senhor de Commynes bebia tudo com um entusiasmo lisonjeador, não cessando de dar ao dente e não parando de falar. O senhor Nardi dava-lhe habilmente razão e os dois homens discutiam política animadamente sem se preocuparem com as senhoras o que não aborrecia Fiora, muito interessada no que ouvia, nem Agnelle, que velava pelo bom desenrolar do festim.

As notícias eram boas, tendo em conta os estranhos acontecimentos que se passavam e, sobretudo, os que quase tinham acontecido. Assim, Fiora soube que um certo condestável de Saint-Pol, que era, em princípio, o grande comandante do exército real, mas que não era menos ”borgonhês”, autêntico e velho amigo do Temerário, tivera uma conduta muito estranha. Portador da grande espada com a flor-de-lis que lhe dava supremacia sobre os príncipes de sangue e casado com a cunhada de Luís XI, uma princesa de Sabóia, Louis do Luxemburgo, conde de Saint-Pol, fora, nada mais nada menos, oferecer os seus serviços ao Temerário e ao Rei inglês, propondo-lhes abrir as portas da sua cidade de Saint-Quentin, mas mandara disparar os canhões quando estes se apresentaram diante das muralhas da cidade... Estranho, não?

Espero disse Agnolo que Sua Majestade não se fie muito na fidelidade desse senhor?

Sua Majestade conhece-o há muito tempo! Saint-Pol, pelo que sei, já não sabe a que santo se dedicar, nem que senhor servir. Entretanto, o primeiro resultado da canhonada foi a partida de monsenhor da Borgonha, que, na madrugada seguinte, deixou o seu aliado inglês, retirando para Valenciennes. Ao saber isto, o Rei não perdeu um minuto para iniciar conversações com Eduardo IV. Ele sabe que os Ingleses têm poucas provisões e que a deserção do exército borgonhês foi um golpe fatal para a sua moral. Alguns pensam que a estação já vai avançada e que talvez tenha chegado a hora de regressar a casa, esperando uma melhor ocasião, mas não querem deixar a França de mãos vazias e o Rei Luís sabe-o bem.

E que pedem eles para partir?

Digamos que as suas pretensões são descabidas: primeiro, reclamaram a coroa de França...

Estavam mesmo à espera que lha oferecessem? perguntou Agnolo, rindo.

É claro que não, mas eles são muito vaidosos. Em seguida, pediram que lhes fosse dada a Guyenne e a Normandia, que lhes são muito queridas...

Mas que ainda são mais queridas à França. E depois?

Depois?... Commynes bebeu o seu Borgonha com satisfação e endereçou ao seu anfitrião um grande sorriso. O Rei acha que vai conseguir o que quer com algum ouro e alguns presentes... O ouro estou eu encarregado de retirar das caves da Bastilha, mas tenho que ver, com os senhores almotacés de Paris, qual o preço da sua tranquilidade. E temos de agir com rapidez. Parto depois de amanhã...

Para Compiègne?

Não, para Senlis, para onde foi o nosso sire. Devo levar o ouro com uma escolta que a cidade me dará...

O Senhor de Argenton virou-se bruscamente para Fiora e acrescentou amavelmente:

Desse modo, não tereis que temer os perigos da estrada, madonna, porque tenho ordem para vos levar comigo.

O Rei quer ver-me? Pensava que me trazíeis, apenas, uma mensagem.

É uma mensagem, mas verbal. Deixaremos Paris de madrugada, quando as portas se abrirem. Aprontai-vos! E agora acrescentou ele, levantando-se deixo-vos, o senhor Nardi e a vós, donna Agnelle, agradecendo-vos esta excelente refeição, porque devo encontrar-me rapidamente com messire d’Estouteville, o chanceler Pierre Doriole e messire Pierre Lhuillier, governador da Bastilha.

E com um passo ligeiro, como se não tivesse comido senão a asa de um frango e bebido dois dedos de clarete, o senhor de Argenton deixou a casa Nardi com a sua gente, que tinha comido na cozinha, recomendando a Agnolo que levasse Fiora

1 Antigos inspectores de pesos e medidas.

à porta de Saint-Denis na madrugada do dia seguinte. Sonhadora, esta subiu para ver Léonarde e pô-la ao corrente do que se passava. Agnelle seguiu-a.