Que me quererá o Rei Luís? inquietou-se Fiora enquanto subia a escada. Devia ter falado de Léonarde a messire de Commynes, dizendo-lhe que me é impossível abandoná-la.
Porquê? Eu tomo conta dela, asseguro-vos disse Agnelle, sorrindo. Certamente, não estareis ausente muito tempo. E Senlis não fica assim tão longe: dez léguas não são nada. E, por fim, uma ordem do Rei não se discute.
Léonarde disse o mesmo. Sentia-se perfeitamente em casa dos Nardi e recuperava pacientemente:
Quando não há mais nada a fazer, a sabedoria é que manda disse ela e como donna Agnelle diz que não a incomodo, fico aqui até estar curada. Ide em paz, cordeirinho, não tendes nada a temer da parte do Rei Luís.
Tenho a certeza acrescentou Agnelle. Quanto a nós, se a ameaça inglesa está afastada, talvez possamos ir para a nossa propriedade de Suresnes. Donna Léonarde ficará lá melhor instalada para prosseguir a sua convalescência, porque lá o campo é muito belo e temos uma vista maravilhosa para o Sena.
Demasiado comovida para responder, Fiora abraçou aquela mulher encantadora e, negligenciando momentaneamente o Rei Luís, virou o espírito para outras preocupações: Esteban ainda não tinha regressado.
O castelhano regressou ao cair da noite, pouco antes do recolher, com uma cara de quem tinha caminhado muito e cheio de fome e sede. A gorda Péronnelle, cozinheira dos Nardi, encarregou-se dele a despeito da hora tardia, instalando-o a um canto da mesa e servindo-lhe um patê de enguias, uma empada de pombo, uma grande fatia fria de boi e alguns doces, tudo regado com vinho de Bourgueil, de maneira a restaurar as forças. O castelhano agradava muito à cozinheira, a quem, antes de partir para Compiègne, rendera bons serviços, extasiando-se, com uma gulodice não dissimulada, com os pratos que a via fazer. Nessa noite, Péronnelle sentia-se satisfeita por apaparicar Esteban e por poder tê-lo só para si. Fiora compreendeu-o e esperou no jardim que o festim terminasse.
Aliás, a noite estava bela e estava-se na época das estrelas cadentes. Sentada num banco perto de um grande maciço de flores-de-lis perfumadas e cor de neve, a jovem deixou que o seu olhar e espírito se perdessem no azul profundo do céu, procurando descobrir as constelações que, em Florença, o velho mestre Toscanelli a ensinara a reconhecer. No ano anterior, naquele mesmo mês de Agosto, estivera na vila de Fiesole com o seu bem-amado pai e pensara estar perdidamente apaixonada por Giuliano de Médícis. Nessa ocasião, nada faltava à sua felicidade de menina estragada, mimada. A sua vida decorria suave e florida, como a seda da China que Francesco Beltrami comprara para a sua filha querida por ocasião de uma das suas viagens a Veneza. E, então, tudo se desmoronara, transformando-se a sua vida numa espécie de inferno demente onde a sua vida se afundara, um caos incoerente eriçado de espinhos cruéis que a tinham rasgado, deixando viver apenas no seu jardim secreto a grande flor púrpura, soberba e venenosa da paixão. As suas raízes tortuosas e insinuantes estavam armadas de garras poderosas, que arrancavam sempre pedaços de carne e, tal como a hidra da lenda, voltava sempre ao ataque. Quem respirasse o perfume violento mas suave dessa flor ficava subjugado, escravo e Fiora, nessa noite, no abrigo daquele jardim, ousou confessar a si própria que, a despeito de tudo o que sofrera, continuava a amar Philippe e, sem dúvida, amá-lo-ia até ao seu último suspiro. A flor púrpura só morreria com ela.
Benzeu-se maquinalmente sempre que, lá no alto, um minúsculo meteoro cintilante raiava o veludo sombrio da noite. Alguns diziam que cada estrela cadente representava uma alma que entrava no paraíso. Outros, que era um sinal de felicidade e que era preciso formular um desejo, mas Fiora, a despeito do gesto piedoso que esboçara, não acreditava numa coisa nem noutra...
O saibro do jardim rangeu sob os passos de Esteban e este, sem dizer uma palavra, sentou-se no banco, no lugar que ela lhe indicou a seu lado. O castelhano não lhe deu tempo a que lhe fizesse qualquer pergunta:
Não vos enganastes, madonna, é mesmo ele. Segui-o, espiei-o e fiquei com a certeza.
Onde é que ele foi?
Primeiro, seguiu o cardeal de Bourbon até à residência deste, que fica perto do Louvre. Fazia parte da gente que o acompanhava e eu até vi, em determinado momento, o soberbo cardeal inclinar-se para o monge para lhe confidenciar qualquer coisa.. Mas este só deve ter tomado, na residência de Bourbon, a refeição do meio-dia. Vi-o sair logo a seguir e regressar à catedral, para ali cantar as vésperas e as completas... às quais assisti como bom cristão. Em seguida, frei Inácio foi a um convento vizinho de Notre-Dame, que me disseram pertencer aos Jacobinos. E, desta vez, não voltou a sair. Então, regressei, um pouco moído, um pouco cansado, mas plenamente santificado... Que quereis que faça, agora?
Que ides rapidamente para a cama, porque bem a merecestes. Para já, temos de abandonar o monge ao seu destino. Até porque, depois de amanhã, parto com messire de Commynes. Sabeis, sem dúvida, que o Rei me mandou chamar?
Sei. Quanto a porquê, sei tanto como vós. Mas deve ser por uma boa causa, a julgar pelo acolhimento que reservou ao meu senhor. Entretanto, não sou da vossa opinião no que respeita a frei Inácio. Amanhã vou outra vez para os lados do convento dos Jacobinos. Talvez consiga saber qualquer coisa sobre o que o trouxe a Paris.
Sede prudente, peço-vos. Sabeis como ele é perigoso e talvez seja melhor não chamar a sua atenção sobre nós, eu ou o vosso patrão, porque ele tanto odeia um como o outro...
Confiai em mim. Ele nem suspeitará da minha presença.
Esteban tinha a sua ideia. Na manhã seguinte, cedo, vestido com um fato de tela e armado com dois cabazes pertencentes a Péronnelle, que esta lhe tinha confiado com uma lista de compras quando ele a informou da sua intenção de ir dar uma volta pelo mercado, errou pela vizinhança do convento dos Jacobinos até que viu sair um irmão leigo equipado com cabazes semelhantes aos seus. O castelhano correu-lhe no encalço e um instante depois apanhou-o, mandou-o parar e apresentou-se como um criado doméstico estrangeiro recentemente chegado a Paris, pouco familiarizado com as mercadorias mais afamadas.
Deram-me esta lista acrescentou, mostrando o que ele próprio escrevera, com Péronnelle ignorante de todo aquele exercício e explicaram-me o caminho do mercado, mas foi tudo.
Fizestes bem em falar comigo disse o monge com um ar importante. Eu conheço todos esses mercados e apontar-vos-ei as lojas onde se encontram os melhores géneros ao melhor preço.
Ficar-vos-ei infinitamente reconhecido, meu irmão respondeu Esteban com humildade.
O seu reconhecimento traduziu-se pela única maneira que conhecia. O castelhano, uma vez os cabazes cheios, arrastou o seu benévolo guia para uma taberna da rua Couvillière para ali o regalar com algumas taças de vinho fresco. O irmão Guyot tinha um coração simples, que sabia reconhecer e apreciar os favores de Deus e com um fraco pelo sumo de uva, essa divina bebida santificada pelo próprio Senhor na noite da última Ceia. Ao cabo da terceira taça de vinho de Suresnes, já Esteban sabia o que fora procurar: frei Inácio Ortega fora investido por Sua Santidade, o Papa, numa missão particular e discreta junto do Rei de França, ao qual se juntaria proximamente e com a qual todo o convento se sentia honrado.
Descansado naquele ponto, Esteban lembrou ao seu companheiro que eram horas de voltar e colocou-o no caminho de regresso, alegando, para não ir de novo à rua Saint-Jacques, uma última compra a fazer naquele bairro. Meia hora mais tarde levava a Pétronnelle os cabazes cheios e a Fiora as informações fresquinhas.
A missão dele não deve ser de importância capital supôs a jovem senão o Papa teria mandado um cardeal-delegado...
Não sou da vossa opinião. Um simples monge passa mais despercebido do que um cortejo pomposo com uma samarra púrpura, e muitos segredos de Estado acompanham, muitas vezes, homens ainda mais modestos. De qualquer maneira, este monge vai aonde nós vamos. Trataremos, o meu patrão e eu, de o vigiar. Não vos preocupeis com ele, donna Fiora!