Fiora passou aquele último dia em Paris junto de Léonarde, sentindo-se culpada por abandoná-la, como se a decisão tivesse sido sua. Só se afastou dela por um momento, após o almoço, para ir ter com Agnolo Nardi ao seu gabinete, que lho tinha pedido.
Não tendes necessidade de dinheiro, donna Fiora? perguntou o negociante quando ela entrou, enquanto lhe designava uma cadeira.
Não me deixeis confusa, ser Agnolo! A generosidade com que nos recebestes, aos meus amigos e a mim, proíbe-me de vos abordar com essa questão...
Por Baco! Donna Fiora. Que estranha filha de negociante que vós sois. Misturais tudo!
Não creio e até vos peço que não continueis, porque me embaraçais!
Dio mio! Não compreendeis nada, mas mesmo nada, do que são os negócios! A hospitalidade é um dever de qualquer cristão, que entre nós se junta a um prazer maravilhoso, mas é uma coisa que não faz parte do comércio. No que vos diz respeito, a realidade é esta: Ser Angelo Donati, que assumiu, de acordo com Sua Senhoria de Médicis, a responsabilidade dos bens, comércio e propriedades do defunto Francesco Beltrami, fez-me saber que os benefícios que, no meu negócio, eram parte do vosso pai, devem ser-vos entregues integralmente. Acontece o mesmo com o balcão de Bruges, ou, para mais comodidade, com ser Renzo Capponi, que recebeu ordem de me enviar, todos os anos, o que vos é devido e posso dizer que, se não se trata de uma riqueza comparável com a do nosso querido Francesco Beltrami, estais assim mesmo, a partir de agora, à cabeça de uma agradável fortuna, que engordará todos os anos e que vos permite hoje mesmo, se assim o desejardes, comprar uma bela casa em qualquer local de França que vos agrade. No Loire, por exemplo, onde a vida é tão doce e onde o Rei reside normalmente.
Será que, por pura bondade, não estais a exagerar?
De maneira nenhuma, pela minha honra! Tendes de pensar no futuro, donna Fiora, e agarrar o que vos pertence...
Não sei o que fazer, de momento. No entanto, aceito de boa vontade alguma liquidez para a viagem que vou encetar amanhã, mas só o que for preciso. Quanto ao resto, desejo que o coloqueis no melhor dos nossos interesses comuns e desejo que façais tudo o que vos for possível para assegurar o tratamento e conforto da minha querida Léonarde...
Com um gesto desenvolto, Agnolo afastou o último desejo como se não tivesse qualquer importância e dirigiu-se a um dos pesados cofres com ferragens que se encontravam alinhados ao fundo do seu gabinete de trabalho. O mercador abriu-o e tirou um saco que parecia bem pesado.
Para começar, estão aqui mil libras. Podereis pedir-me outro tanto sempre que necessitardes e, já que me confiais a administração da vossa fortuna, farei com que nunca vos venhais a arrepender.
Comovida, a jovem aproximou-se dele e deu-lhe um beijo em cada uma das faces.
Tenho a certeza. Em todo o caso, obrigada por serdes o que sois. Se não partisse amanhã, creio que seríeis obrigado a iniciar-me nesse comércio pelo qual o meu pai estava tão apaixonado...
Também para isso estarei à vossa inteira disposição. Seria uma boa coisa, se aprendêsseis tudo sobre os negócios, porque, se ainda estais em plena juventude, eu já não estou. Mas, falaremos disso quando souberdes o que vos quer o Rei nosso senhor!
Fiora sorriu e abraçou o excelente homem. Ainda tinha contas a ajustar com os grandes deste mundo, assim como com um certo Philippe de Selongey, sem contar com Hieronyma del Pazzi, que escapara por verdadeiro milagre ao justo castigo pelos seus crimes. Depois, talvez fosse apaixonante seguir o rasto brilhante que Beltrami deixara. Mas, quando seria aquele ”depois”? Dentro de quantos anos? E que seria daquela jovem florentina chamada Fiora que, a despeito de tudo o que sofrera, ainda acreditava que tudo era possível quando se deseja apaixonadamente?
Na madrugada do dia seguinte, ladeada por Philippe de Commynes e Esteban, transpunha a barbacã da porta de Saint-Denis. A seguir aos três cavaleiros, uma companhia montada de franco-atiradores da Cidade de Paris escoltava várias carroças entaipadas carregadas de tonéis, que faziam rir os hortelãos alinhados ao longo da estrada para deixar passar o cortejo. Riam a bandeiras despregadas, gritando que o astuto Rei Luís tinha grande necessidade de bons vinhos para dar coragem às suas tropas antes da batalha que iam travar contra o inglês rapace. Os soldados sorriam e respondiam com brincadeiras. Apenas Commynes sabia que só três daquelas barricas continham o vinho das colinas do Loire, de que tanto gostava o Rei. As outras iam cheias de ouro, desse ouro que, melhor do que uma batalha sempre incerta, expulsaria, talvez, e uma vez mais, o inglês do solo de França.
Se os campos nos arredores imediatos de Paris ofereciam a imagem de um país ocupado com as suas colheitas, a estrada por que avançavam para norte tinha mais soldados e carroças militares do que camponeses. A mais pequena aldeia estava guardada, o mais pequeno dos castelos revelava, na sua torre, o brilho dos capacetes e ferros de lança. A espessa floresta de Senlis, onde Luís XI gostava de caçar, perdera o seu silêncio. O eco de uma ordem, ou o tilintar de armas, cobria, por vezes, o canto das aves: o Rei, como homem previdente que era, dispusera as suas tropas em posições belicosas, ao mesmo tempo que os seus emissários negociavam com os do monarca inglês.
E, subitamente, foi a calma, a paz divina silvestre, povoada pelo canto das aves. Abandonaram o grande caminho, no termo do qual se perfilavam as muralhas de Senlis, para continuarem por uma vereda arborizada, apenas marcada pelos trilhos das rodas de algumas carroças... Face à interrogação muda de Fiora, Commynes respondeu com um sorriso.
Estamos a chegar! disse ele.
A floresta acabava de se abrir em duas, como uma cortina de teatro, diante do que parecia ser uma cidade em redução: por trás dos muros de altura mediana viam-se as altas janelas floridas de um palácio encimado por cata-ventos dourados e azuis e o esplendor cintilante de uma igreja. As torres inacabadas estavam ainda prisioneiras de um entrelaçado de andaimes e as ardósias novas brilhavam como placas de aço azul. Um grande estandarte, uma grande flâmula, onde o fundo azul com flores-de-lis estava dividido em quatro partes por meio de uma cruz branca, adejava docemente no topo da sua haste dourada na mais alta empena do edifício.
A abadia da Vitória anunciou Commynes. O Rei gosta de viver nela...
Como é bela! suspirou Fiora, sincera. E que belo nome: Vitória!
A origem é simples: em 1214, no dia 27 de Julho, quando o Rei Filipe Augusto derrotou, em Bouvines, o imperador alemão Otão, enviou ao seu filho, o príncipe Luís, um mensageiro portador da grande notícia. Por seu lado, este, ainda eufórico com o sucesso em la Roche-aux-Moines sobre o Rei João de Inglaterra, despachou outro para o seu pai. Dizem que os dois cavaleiros se encontraram neste local e, alguns anos mais tarde, o Rei ordenou a fundação de uma abadia, que foi confiada a doze cónegos regulares da ordem de Santo Agostinho, vindos da abadia de Saint-Victor, em Paris. Ricamente dotada, transformou-se no que vedes: uma nobre residência, digna do Senhor Deus...
É guardada por anjos? Pareceu-me ver, até com asas, uma estátua do Senhor São Miguel...
Com efeito, esplêndidos nas suas armaduras brancas e brilhantes, sobre as quais flutuavam as cotas de malha que retratavam em ponto mais pequeno o estandarte real e grandes gorros chatos com longas penas de garça-real pregadas a medalhas de prata a um dos lados, a pé ou a cavalo, os mais belos soldados que Fiora já vira montavam, de um lado e de outro do portal, uma guarda vigilante.
Commynes pôs-se a rir:
Não são anjos, longe disso! Estais a ver, madonna, a célebre Guarda Escocesa do Rei Luís, que conta entre os seus membros alguns dos melhores guerreiros do mundo. Só conhecem duas leis: a do Rei, ao qual juraram fidelidade e a do amor, susceptível e intransigente que votam à sua honra e à pátria longínqua...