Os viajantes tinham sido avistados. Um cavaleiro galopava na sua direcção e Commynes gritou:
Saudações, Robert Cunningham! Só vos trago amigos. O Rei espera esta jovem dama... e as barricas de vinho que nos seguem.
As caves estão prontas para as receber. Quanto à escolta, vai poder refrescar-se e repousar um pouco antes de regressar a Paris. Mas vós, Messire, não tendes necessidade de interlocutor.
Depois de ter saudado cortesmente Fiora, tentando ao mesmo tempo desvendar o mistério que se escondia sob o véu que ela gostava de usar quando viajava, o escocês fez virar o seu cavalo e tomou a cabeça da fila de barricas. Uma após outra, as carroças e os que as guardavam transpuseram o portal do mosteiro sob o olhar interessado dos arqueiros de guarda.
E agora, nós! disse Commynes com alegria. Aposto que o nosso sire vai ficar encantado por vos ver, madonna...
Para lá do alto portal ogival, no frontão do qual uns anjos ajoelhados, de asas imensas, pareciam proteger as armas de França, os viajantes descobriram um vasto espaço coberto de erva recentemente aparada, formando um belo tapete junto dos edifícios da abadia e da beleza de uma admirável igreja de pedra branca. Imaculados também os grandes galgos usando coleiras de couro com pregos dourados, que brincavam no relvado junto de um homem que devia ser, segundo Fiora, um tratador de cães. Magro e de estatura mediana, vestido com uma túnica curta de tecido cinzento apertada na cintura por um cinto de couro, os calções desaparecendo numas macias botas altas cinzentas de gamo, usava, sobre um gorro vermelho que lhe escondia as orelhas, um chapéu de feltro negro levantado na parte traseira, sobre a copa do qual estavam fixadas algumas medalhas.
Que belos animais! exclamou Fiora. Dá a impressão que saíram de uma lenda... E como parecem gostar do homem que trata deles!
Com efeito, gostam muito dele assegurou Commynes com uma piscadela de olho cúmplice para Esteban. Quereis vê-los mais de perto?
O senhor de Argenton já tinha posto pé em terra e oferecia a mão à jovem para que ela fizesse o mesmo. Esta hesitou:
Será prudente, por causa de um instante de prazer, fazer esperar o Rei? Dizem que é paciente...
Vinde! Prometo-vos que tereis direito a toda a indulgência...
Um pouco contra vontade, Fiora deixou-se conduzir. Esteban permaneceu no seu lugar, juntando nas mãos as rédeas dos três cavalos. Sentindo a aproximação de estranhos, os galgos Pararam de brincar e imobilizaram-se, as cabeças esguias fixas nos recém-chegados. Ao ver aquilo, o tratador virou-se. Sob o olhar estupefacto de Fiora, Commynes pôs um joelho em terra:
Sire disse ele eis-me de volta, tendo cumprido as duas missões que o Rei se dignou confiar-me! Depois, entredentes, acrescentou: ”Saudai, que diabo!”
E Fiora, maquinalmente, dobrou os joelhos para uma profunda reverência.
Bem, bem! disse o Rei. Mais uma vez servistes-me bem, messirePhilippe, pelo que vos estou grato. Agora, quereis ter a amabilidade de me deixar a sós com esta jovem dama, da qual espero a graça de se dignar levantar o véu? Mas não vos afasteis: temos que falar!
Sem abandonar a sua posição desconfortável, meio ajoelhada, Fiora atirou a sua musselina por cima da dupla coifa de seda que lhe servia de toucado, libertando o rosto. Mal refeita da surpresa, a jovem contemplava aquele homenzinho sem aparência, que, no entanto, era o Rei de França. Não era belo nem jovem cinquenta e dois anos feitos no dia de Saint-Anatole último mas sob o olhar dominador daqueles olhos castanhos profundamente encovados nas órbitas, a jovem sentiu-se corar e baixou a cabeça, tendo apenas conseguido reparar no longo nariz sardónico, na boca delgada, sinuosa e móvel, mas soube que, mesmo que vivesse mil anos, nunca esqueceria aquele rosto. Tinham-lhe dito que aquele homem possuía a inteligência mais subtil e profunda que havia e, desde o primeiro olhar, ficou persuadida.
Entretanto, Commynes tinha-se afastado sem que Fiora tivesse sido autorizada a levantar-se. E, subitamente, a jovem viu, sob o seu nariz, uma longa mão seca, que se estendia para a ajudar a erguer-se, ao mesmo tempo que uma voz amável pronunciava:
Senhora condessa de Selongey, sede bem-vinda.
O estupor quase atirou Fiora por terra. A jovem vacilou como se sob o assalto de um brusco golpe de vento e ficou tão pálida que o soberano pensou que ia desmaiar:
Que se passa? disse ele num tom descontente não é esse o vosso nome? Ter-nos-iam enganado?
Compreendendo que tinha diante de si um adversário formidável, Fiora, à custa de um violento esforço, conseguiu recuperar.
Que o Rei me perdoe uma emoção da qual não sou dona disse ela docemente. É a primeira vez que me chamam assim e não estou certa de ter direito a esse título. Messire de Commynes disse-me que o Rei queria ver Fiora Beltrami. É essa... e nenhuma outra que tenho a honra de colocar, a partir deste momento, às ordens de Vossa Majestade...
A reverência foi repetida na perfeição: um milagre de graça e elegância e o duro olhar apreciador suavizou-se com uma ponta de alegria:
Ah ah! Estarei a vislumbrar um mistério? Quereis, condessa, caminhar um pouco para esclarecermos isso? Devagarinho, cães! Segui-nos e que eu não vos ouça!
Ambos deram alguns passos na erva ainda húmida por uma chuvinha que caíra ao começo da tarde, refrescando o local. Desorientada com a apóstrofe de que fora objecto e tentando desesperadamente descobrir como podia Luís XI estar ao corrente do seu estranho casamento, Fiora perdeu-se em conjecturas. Era impossível, impensável, que Demétrios fosse o culpado de tagarelices irreflectidas. Então? Quem? Como? Porquê? Tantas perguntas sem resposta, pois era proibido interrogar um Rei... Aliás, este pôs fim às suas vãs interrogações continuando, num tom diferente:
Nós conhecemos, em tempos, messire Beltrami, o vosso pai e tínhamos estima por ele porque era um homem recto, honesto e generoso e foi com pena que soubemos do seu trágico fim e dos acontecimentos que se seguiram... Já sabíamos que o senhor Lourenço de Médicis possuía um belo talento de poeta, mas ignorávamos que a sua pena pudesse atingir um tal grau de evocação lírica quando nos descreveu os infelizes acontecimentos de que fostes vítima, donna Fiora acrescentou o Rei com um sorriso fino. Na verdade, o grande Homero não teria feito melhor!
No entanto, monsenhor Lourenço prometeu-me que nunca falaria de mim protestou Fiora, que acabava de perceber de quem Luís XI recebera aquela surpreendente posse dos seus segredos.
Sem dúvida, mudou de opinião. Talvez com o fim de vos proteger, mesmo contra a vossa vontade? De qualquer maneira, ele conhece-nos demasiado bem para ignorar que nós, em todas as coisas, queremos saber tudo daqueles que se aproximam de nós. Esta exigência tem o mérito de esclarecer as situações, de evitar as mentiras e de nos poupar a explicações tão enredadas quanto confusas. As nossas relações, assim, ficam simplificadas. Que achais?
Que o Rei tem razão, sem dúvida, mas nem por isso fico menos agastada...
Por Deus, minha senhora! Nós acabamos de vos falar clara e francamente. Tratai de nos pagar na mesma moeda e concedei-nos a graça de algumas momices e afectações femininas. Pelo que sabemos de vós, sois corajosa. Não mudeis!... E não fiqueis com essa cara contrita! Dizei-nos antes por que razão não estais certa de ser Mme. de Selongey?
Um pouco aliviada, apesar de tudo, por poder avançar por um terreno mais estável, Fiora, com tanta simplicidade como se aquele desconhecido fosse o seu confessor, contou a sua infeliz visita ao castelo de Philippe e a dor e cólera que sentira. Luís XI escutou-a sem nada dizer, caminhando com a cabeça um pouco inclinada e as mãos atrás das costas.