E agora concluiu Commynes, atacando galhardamente um presunto cozido nas cinzas Eduardo e os seus estão mais ou menos onde o Rei queria que estivessem: devoraram todas as provisões e, como não se podem alimentar na região, os seus ventres começam a dar horas... o que, graças a Deus, ainda não é o nosso caso! Experimentai este porco, donna Fiora, está sublime. Mestre Auburtin excedeu-se...
O duque da Borgonha não aprovisionou o cunhado quando se lhe juntou? perguntou Demétrios.
Só tinha com ele cinquenta cavaleiros e as cidades da Flandres tinham-lhe recusado qualquer ajuda...
Foi nessa ocasião que o conde de Selongey foi feito prisioneiro? perguntou Fiora com uma voz que ela esperava fosse calma.
Os olhos dos dois homens viraram-se para ela, mas ela não os viu. Aquecendo entre as mãos a sua taça de vinho, a jovem aspirava o aroma com um ar distraído, sem parecer aperceber-se do silêncio que acabava de provocar.
Foi um pouco mais tarde respondeu calmamente Commynes, como se a pergunta de Fiora se inscrevesse com toda a naturalidade no seu relato. Durante Beauvais. Os espiões do Temerário souberam que o nosso sire, para relaxar um pouco o espírito, quis, um certo dia, ir à caça das cercetas, perto de Therain, sem uma grande escolta. Messire de Selongey emboscou-se com alguns homens nos silvados de uma casa em ruínas. Quando o Rei apareceu, lançou-se sobre ele, atirou-o do cavalo abaixo e já brandia uma maça sobre a sua cabeça quando Robert Cunningham, que vistes há pouco e a quem aquela partida de caça não inspirava confiança, surgiu subitamente com uma dezena de escoceses. Selongey não parava de insultar o nosso sire. Foi subjugado, assim como o seu escudeiro Mathieu de Frame, ao mesmo tempo que os seus homens eram mortos mesmo ali. Os prisioneiros foram primeiro conduzidos para a prisão do bispo de Beauvais e depois para o castelo de Compiègne, onde estão enquanto esperam por um julgamento que não tardará...
Mas, em tempo de guerra não é costume pedir um resgate pelos senhores prisioneiros?
Sem dúvida, no entanto aquela não foi uma acção de guerra, antes uma tentativa de assassinato, friamente premeditada. O Rei não estava armado. Acrescento que uma tal temeridade não me espanta vinda daquele louco do Selongey. Ele ignora tudo da diplomacia e só conhece um argumento: matar! acrescentou Commynes com um gesto de desdém que fez corar Fiora. Além disso, tem pelo seu senhor uma devoção cega, surda, impenetrável a qualquer raciocínio. Até Deus vem depois do seu príncipe, no qual não vê qualquer defeito e não compreende, nem compreenderá nunca, que corre deliberadamente para um abismo que engolirá irremediavelmente aquele grande ducado que ele pretende transformar em reino...
1 espécie de pato.
A alegria desaparecera subitamente do rosto de Commynes. De olhos exorbitados e boca retorcida, não olhava para nenhum dos seus companheiros e Fiora teve a impressão súbita que não se dirigia a nenhum deles, antes falava consigo próprio.
Assim, foi com muita suavidade que ela continuou:
Como é possível estardes tão a par dos assuntos da Borgonha, messir e Falais do duque Carlos como se o conhecêsseis pessoalmente...
A mão de Demétrios acabava de pousar-se sobre a de Fiora para a pôr de sobreaviso contra qualquer coisa, mas era demasiado tarde. Philippe de Commynes virou para ela um olhar que a jovem não conseguiu decifrar. De qualquer modo, pareceu-lhe que continha alguma dor, mas, no entanto, foi com um sorriso que ele lhe respondeu:
Eu sou flamengo, donna Fiora. O meu pai, Colart de Commynes, foi governador de Cassei, bailio de Gand, soberano bailio da Flandres e cavaleiro do Tosão de Ouro. O duque Filipe era meu padrinho e eu fui criado na sua corte. Aos dezassete anos, em 1464, fui agregado à pessoa do conde de Charolais, que, ao tornar-se duque da Borgonha, fez de mim seu conselheiro e camareiro. Mas eu já sabia que nenhum entendimento seria possível entre mim e um senhor incapaz de ouvir um conselho sensato, ou moderado. Se tivésseis, como eu, assistido à destruição de Dinant, ao massacre metódico de todos os seus habitantes, homens, mulheres e crianças, velhos e mesmo recém-nascidos, e isso porque aqueles infelizes tinham ousado erguer a voz contra o seu suserano, compreenderíeis o que quero dizer... Tive vontade de vomitar, mas ele considerou tudo aquilo com um olhar frio de satisfação. Voltei a ver esse género de matança em Liège, onde ninguém foi poupado, nem sequer as freiras enclausuradas, nem sequer os seres mais miseráveis...
Nesse caso disse Fiora sem procurar esconder a surpresa éreis borgonhês?
O sorriso de Commynes tornou-se sarcástico:
E agora sou francês. Um transfuga, não é verdade? O Temerário diria traidor e, no entanto, não creio merecer esse epíteto. Só se trai o que se admira, estima ou ama, e eu nunca senti por Carlos nenhum desses três sentimentos. Tudo o que ele deseja inspirar, aliás, é o medo...
Quando conhecestes o Rei Luís?
A primeira vez foi na batalha de Montlhéry, onde o vi combater valentemente sem deixar de comandar e de fazer o que podia pela vida dos seus soldados. Admirei-o. Depois, voltei a vê-lo naquele infeliz encontro de Péronne, nessa armadilha onde ele se extraviou e onde, durante horas, a morte esteve suspensa sobre a sua cabeça sem que parecesse assustado. Demonstrou ser um diplomata fantástico e, então, compreendi que era habitado por um génio. Creio que gostei dele pelo seu valor e fiz tudo para reter a cólera cega do Temerário. O Rei testemunhou-me o seu reconhecimento...
Dizem disse Demétrios que o Temerário o obrigou a acompanhá-lo a Liège e assistir à punição dos seus habitantes... que, no entanto, eram os seus amigos da véspera. Parece que permaneceu sereno, atendendo às circunstâncias...
É um comediante espantoso e confesso que esta ”aranha” me fascina, tecendo paciente e cuidadosamente a teia onde os insectos, aturdidos, caem. Depois de Péronne, levei a cabo para o Temerário diversas missões em Inglaterra, na Bretanha e em Castela, sem nunca receber outra coisa senão críticas amargas ou respostas tortas. Ao mesmo tempo, via-o desenvolver uma política impiedosa e demente. Com que sonhava o Temerário? Com um Império! Com a hegemonia da Europa! Conseguir que o imperador Frederico III o reconhecesse como seu herdeiro em vez do filho! E agora, quer o reino, para o qual precisa da Lorena, que unirá os países de cá aos de lá... mas eu já tinha partido. Uma missão inútil, onde quase deixei a vida, decidiu-me: o Rei Luís XI chamava-me. Na noite de 8 para 9 de Agosto de 1472, há pouco mais de três anos, juntei-me a ele em Anjou, nas Ponts-de-Cé. E não estou arrependido...
Que vos acontecerá se, por acaso, o Temerário se apoderar de vós? perguntou Demétrios.
O meu fim será, sem dúvida, exemplar. Aliás, ao atacar o rei, Philippe de Selongey contava fazer um golpe duplo, levando-me também acorrentado, porque, creio, ainda deseja mais a minha morte do que o seu senhor. Infelizmente para ele, eu não aprecio a caça... e, agora, é ele que está prisioneiro.
Conhecei-lo bem? murmurou Fiora.
Bastante bem. Só é dois anos mais velho do que eu e fomos, durante muito tempo, companheiros de armas. Mas nunca fomos verdadeiros amigos: somos muito diferentes.
No entanto, talvez tenhais conhecido a sua mulher?